Não dá nem pra começar a listar tudo o que mudou na minha vida, porque, sério, há menos de um ano eu era um cara totalmente diferente. Outra pessoa mesmo. Nem outro homem, era um garoto, caralho. Me achava adulto pra cacete, mas só percebi como era mesmo um menino quando tive de crescer no muque. Então, não vou enumerar o que mudou. Mas vou dizer que, antes, eu falava por Skype uma vez por semana com o meu pai e com a minha mãe. Agora, falo uma vez por semana com o meu pai, e só. Tem sido mais ou menos assim:
-Pai, ela ainda tá aqui.
-Eu sei, ela ainda não tá aqui, deve estar aí.
-Pai, por que ela ainda tá aqui?
-Porra, sei lá, mas espero que fique um bom tempo, porque apostei uma garrafa de uísque que ela não volta tão cedo.
Na verdade, até o Presidente da República sabe por que ela tá aqui. Mamãe veio quinze dias antes do George nascer, gritando ao celular, no saguão do aeroporto (segundo ela), que era pra Julia fechar as pernas e não se atrever a colocar um Gonzaga no mundo até que ela chegasse. Ela chegou com os meus irmãos, começou uma verificação maníaca do apartamento para se assegurar se ele estava em condições de receber o bebê, enquanto explicava pra Julia que os Gonzagas se protegiam por ser uma espécie em extinção. O mais estranho é que nós já estivemos mesmo à beira de sermos extintos, mas atualmente o que mais tem é Gonzaga no mundo. Os natais estão aí pra provar.
George nasceu no dia 4 de julho, dia da independência, com a cidade de Nova York toda iluminada pelos fogos de artifício. Tommy disse que os fogos eram pro George, e, juro, mesmo sabendo que todos os quintais de todas as casas se iluminavam em homenagem ao país que me dava abrigo temporário ter se livrado das garras do país que me adotou, acho que eles também comemoravam a chegada do meu filho. Peguei aquele ser humano minúsculo e de verdade no colo, e aí eu achei que tivesse realmente crescido. Dormi menino, acordei gente grande. Fiz uma vida, era responsável por ela, e mais cedo ou mais tarde a responsabilidade me enlouqueceria, mas que fosse mais tarde. Bem mais tarde. Porque ele era lindo. E, vou me repetir, era real. Não fazia ideia do que faria da minha vida, do que faria por ele, só sabia que ele seria feliz pra caralho, e agora essa era a minha única meta e única ambição. Tive dois pais que, com suas qualidades e defeitos, foram incríveis. Não era possível que eu não houvesse aprendido nada com eles que não pudesse passar adiante.
Veio todo mundo. Meu pai, o tio Eddie, a dinda, a Emily, o Dave, o Josh. E foi embora todo mundo também. Menos a mamãe.
No início foi um puta alívio, sabe? George media cinquenta centímetros, era um pouco maior que o meu antebraço, e ocupava todos os espaços do apartamento. Tem criança pra caralho à minha volta desde sempre, mas nada intimida mais que um bebê frágil cuja sobrevivência depende de você e cuja vida você pode colocar em risco se piscar na hora errada. Mamãe foi genial, tomou conta de tudo, tomou conta do George, da gente e da cozinha, até que eu notei que a Julia estava ficando incomodada, sabe? Que ela queria cuidar do George, da gente e da cozinha, e tinha todo o direito de fazer isso, é a casa dela.
Mas como dizer isso sem partir o coração da mamãe? E cara, aquele coração eu não parto nem fodendo.
A merda é que a mamãe nunca deixou a gente crescer, sabe? Passei a minha vida inteira com ela dizendo que a gente tinha de estudar, tinha de se formar, que a gente tinha de ter responsabilidade, mas nunca precisamos fazer nada disso, porque ela sempre tomou conta de tudo, e só percebi isso quando me mudei pra Nova York e tive de pesquisar na internet pra descobrir como se fazia macarrão. É bom pra burro, e ruim pra caramba, também. Primeiro, porque tive de crescer na marra. Segundo porque a mamãe não vai estar sempre por perto, o que é uma ideia de te fazer querer enfiar a cabeça numa parede. Houve duas vezes que pensei que ia perde-la. Uma, literalmente, e nem quero lembrar disso. A outra, de forma figurada, e nessa quase perdi meu pai junto.
Foi a única vez que a mamãe não cuidou da gente. Meu pai fez o último show da turnê de despedida com a primeira banda dele. Eu assisti e filmei, gostava de filmar desde aquela época e já dizia que ia dirigir documentários quando todos os meus amigos sonhavam em ficar na frente das câmeras. O show acabou, mamãe não me deixou ir à festa e foi me levar em casa. Foi então que a merda aconteceu. Meu pai foi para a festa de carona com o agente dele na época, se meteu em um acidente medonho e terminou em coma no hospital.
Não sabíamos o que seria feito dele. Não sabíamos se ele sobreviveria. Tommy e Angie eram bem pequenos e uma vez falei com a Angie sobre isso, mas ela disse que não se lembrava de nada, só da bota de gesso que o papai usou um bom tempo depois e ela ficava colorindo com canetinha. Mas eu lembro muito bem. Lembro que não sabia se teria o meu pai de volta, se ele estava chateado comigo porque eu nunca usei o nome dele, e me lembro de me perguntar por que a mamãe não estava em casa comigo.
Lembro também que teve uma vez que o tio Eddie finalmente a levou pra casa, fez um macarrão pra ela e voltou pra sala cantando salsa, e a mamãe deu uma risada. Criei coragem e pedi para ela me levar para ver o papai, o riso morreu imediatamente, e me senti um merda por tê-la deixado triste novamente. Queria ser como o tio Eddie, que a fazia rir mesmo no meio da tragédia, e não como eu, que tirava o riso do seu rosto. Mamãe falou que me levaria no dia seguinte, mas para eu não me assustar que o papai estava inchado por causa dos remédios, mas depois que parasse de toma-los ele ficaria como antes.
Queria perguntar se ele ficaria bom para parar de tomar os remédios, mas fiquei com medo de fazer a mamãe chorar de novo.
Cara, meu pai estava irreconhecível. Não queria pagar mico, mas sempre fui chorão pra caralho, e não deu pra controlar. Minha mãe foi bem guerreira, bem menos o caco que estava ultimamente. Ela colocou o braço ao redor dos meus ombros e repetiu que eram só os remédios, ele pararia de toma-los e voltaria ao normal e, mesmo que não voltasse, o que importava é que ele ficaria bem. Só entendi exatamente o que ela estava fazendo quando peguei o George no colo. Ela não sabia de porra nenhuma, ela achava que o papai fosse morrer de verdade, mas, mesmo que o mundo caísse, ela estaria ali pra me segurar. Como vou segurar o George não importa o que acontecer.
Mas, mesmo sendo um moleque, eu entendi um pouco, e perguntei se podia falar com o papai.
-Claro que pode, amor – Mamãe respondeu. – Algumas pessoas dizem que ele escuta.
Sentei ao lado da cama e vi, com o canto dos olhos, que a mamãe continuava parada, me olhando.
-É que eu queria falar com ele sozinho.
-Claro – ela acordou e saiu.
Achei que fosse ser difícil falar com aquele cara estranho que estava deitado na cama. Ele era muito diferente. Era quase como quando o conheci, ser apresentado ao meu próprio pai, a diferença é que o pai daquela época era o Tommy Lewknor que eu via na TV e nas revistas, e esse Tom não tinha semelhança alguma com ele. Olhei pra porta e vi o salto da minha mãe desaparecendo no corredor e pensei, difícil porra nenhuma, é a minha família, não importa o que acontecer. Mamãe sempre colocou as melhores pessoas do mundo à minha volta, a começar pelo pai que ela escolheu pra mim. Abaixei pra falar perto do seu ouvido, porque na minha cabeça zoada eu achava que ele escutaria melhor, e lembro bem o que disse:
-Não deixe a gente sozinho. E, por favor, não a deixe sozinha.
Mas juro que, se a mamãe não voltar logo pra Londres e deixar a mim, a Julia e o George sozinhos, eu vou enlouquecer.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...