A mãe recolhia pertences da criança espalhados pelo quarto ainda. A dor diminuía-a mais ainda e sombreava sua cor e seus cabelos curtos, cuja tintura precisava de retoques, os olhos secos, castanhos, com bolsas escuras. Relembrava cada brinquedo que ela e seu marido tinham dado a ele. Parou com um Homem-Aranha a meio caminho da boca da caixa. Conteve-se de olhos vazios. João Lucas nunca mais precisaria de seus bonecos, livros, gibis, roupas, sapatos. Deixou o mofo no quarto fechado. No térreo, o pai terminava de encaixotar o resto do mundo. Envergava-se em 1,70m, braços e uma barriga proeminente, barba por fazer, olhos pequenos de rato, cabelos rareando. Num canto caixas ansiosas com os pedaços de seu filho único. Ele não olhava para elas, evitava. Os móveis já estavam desmontados e no caminhão parado na frente de sua casa.
João Lucas tinha 11 anos, grande para os 8 meses de uma gestação complicada. Hilda, sua esposa considerara um milagre engravidar na sua idade. Desde o princípio fora seu principezinho e como tal crescera. Inteligente, andara e falara cedo. Um bibelô de cachos negros e olhos claros. Tudo estava perfeito. «Foi a nossa ignorância», pensou ele. «Sobrevive-se à infância, alguns mais do que outros.»
Quatro meses de um silêncio vazio, sem pistas de seu menino. A delegada que investigava só encontrou as roupas de João Lucas num matagal sujas de sangue e rasgadas, nada do corpo, por menor que fosse o pedaço.
André e Tadeu, vizinhos mais chegados terminavam o carregamento da mudança da casa e zuniam como abelhas: « - (...) vi que ia dar nisso! – Quiéisso homem? (...) o garoto era um projeto de frutinha mas merecia isso? (,,,) nem o corpo para ser enterrado cara. – Hunf! Quem fala! sempre reparava que ele ia ser viado. O que faltou foi exemplo, Deus, linha dura, mimado demais deu no que deu, ainda bem que meu filho se afastou logo, quero nem imaginar, o Pedrão tá vindo aí porra, calado!»
A ONG veio recolher as doações pontualmente às 10hs da manhã, agradeceram e falaram as palavras bonitas e vazias como script. Hilda sonâmbula, à base de remédios que a ajudavam a seguir, dormir, enfim a viver a terra seca que se tornou a vida de ambos. Na casa nova, afastaram-se como a água e o óleo, conviviam numa condenação e numa culpa muda mútua. O amor, paixão ou desejo ficou para trás com o cadáver podre de seu filho que nunca acharam.
No quinto mês do desaparecimento de Joãozinho a conta do Facebook de seu filho foi acessada, postaram uma foto montagem dele vestido com roupas de menina e junto escrito: Gay imundo, que apodreça onde estiver!
A polícia foi alertada, mas a conta de onde foi postado o ataque era falsa e os pais passaram por mais um calvário criteriosamente seguido como um reality show pela mídia. Imediatamente essa foto e seu conteúdo se transformaram em uma campanha exaustivamente acessada, replicada, comentada, curtida e seguida. No meio dessa ampla cobertura da TV, rádio, jornais e internet, aos poucos foi aparecendo a história de João Lucas: uma vítima da omissão coletiva. Seus pais não foram poupados de nada, de cada detalhe sórdido levantado. Desejando a eternidade, a mãe tentou o suicídio, o que aguçou ainda mais a opinião pública contra e a favor deles.
Os amigos que restaram tentaram protegê-los, mas não conseguiram. Estavam sozinhos, assim como seu filho. O silêncio dentro daquela casa era insuportável, nenhuma TV ou rádio era ligado, parecia uma lápide.
Um dia de rara visita de Tadeu, sua esposa, o seu filho menor Júnior de 8 anos, o garoto curioso vasculhando o computador da família em busca de jogos, encontra 2 pastas com o nome Joãozinho dentro de outra. Chamou D. Hilda imediatamente e abriu a primeira que continha só umas fotos da família, um filme dos X-Men e alguns desenhos. Na segunda pasta dois arquivos em Word sem título. O garoto clicou no primeiro e os olhos de D. Hilda se arregalaram, pois era um texto de seu filho. Lendo um pouco, ela pediu para ficar sozinha e com os olhos úmidos leu.
«Meu silêncio é mais forte do que qualquer grito de dor que empurra meu coração para minha boca. Desde pequeno sou diferente, achava os meninos mais legais que as meninas. Morria de curiosidade de ver o pinto dos meus amigos. Me tornei recluso, pois havia algo diferente em mim. Era um medo de tudo, um medo de mim, por mim, dos outros.» Terminou o texto aqui e a mãe rapidamente passou o cursor em cima do outro arquivo e seu filho estava ali, vivo, inteligente e falando com ela. Limpou sua garganta, enxugou suas lágrimas com força e continuou.
«Sempre fui magro, queria ser forte como eles. Nunca consegui e como sempre era quieto e distante, respondia tudo, tinha boas notas, eles passaram a me xingar, empurrar no recreio, todos riam de mim, primeiro na classe e depois no colégio inteiro. Um dia minha professora de Português chegou no primeiro horário e eles tinham escrito no quadro aquele que seria meu apelido para sempre: «Joãozinho bichinha», chorei tanto, que ela puniu a classe inteira, pois passei mal e vomitei, voltei mais cedo com mamãe, com febre. Não sei o que falaram pra ela. Foi pior, pois a partir daí eles começaram a me bater. Eu não queria chamar mais atenção para mim e todo o recreio ficava dentro da sala de aula. Me roubavam o dinheiro do lanche, até que passei a trazer sanduíches de casa, mas não deu certo.
Tentei e tentei demais ser normal como eles queriam que eu fosse, que não era seu inimigo, mas eles me fizeram descobrir que eu era gay, o que me fez lutar contra mim mesmo para ser igual a eles. Procurei ler sobre isso, não tinha com quem falar, com meus pais?eles me botariam para fora de casa e os amo demais para causar essa tristeza. Por mais que tentasse não conseguia esconder o que era. O que não se aceita é melhor que fique escondido era o que pensava. Tinha nojo de mim, quando escutava, via ou lia algo sobre sexo, entrava em pânico. Passei a ter crises de asma nervosa, fui no médico. Bruno era filho de um casal amigos de meus pais, era 2 anos mais velho que eu e vizinhos, nossas mães eram amigas íntimas e nós filhos únicos a princípio, depois veio o Tadeuzinho Jr. Frequentávamos a casa um do outro, brincávamos muito, melhores amigos. Estudávamos juntos e até ele se afastou e passou a rir e a desmunhecar com os outros quando me via. Ninguém nunca mais me tocou, pois se tocassem virariam bicha também. Não sei bem explicar como, mas nossa relação se extinguiu quando obrigaram Bruno a me bater no Recreio, quando ele e mais três valentões me encurralaram, até revidei, mas era fraco, magro e cheguei em casa cheio de hematomas, ainda hoje sinto o gosto e a dor do sangue. Odiei o Bruno e todos eles.
Minha vida a partir da volta à escola virou um inferno. Com tudo isso, poucas vezes convivíamos quando nossos pais comemoravam algo juntos, fora isso éramos meros colegas de sala. Fiquei feliz hoje, pois Bruno conversou rapidamente comigo enquanto voltava da biblioteca, pediu desculpas e me chamou pra sair e brincar, mas logo saiu correndo, pois não queria ser visto comigo. Descobri que ele gosta de mim, como eu dele. Vamos ficar juntos me prometeu. Hoje tomei uma decisão, nunca mais sentirei e nem serei motivo de escândalo para minha família, onde quer que eles estejam, espero ter o seu amor!», ela leu e releu dezenas de vezes cada linha escrita chorando.
Esperou seu marido e contou a ele. Abraçaram-se chorando e depois seguiram à sua congregação para escutar A Palavra. No púlpito, o pastor Macedo que antes de começar tinha escutado o pedido de D. Hilda e seu marido de dar seu testemunho, achou por bem dar alguns minutos para a mensagem do casal. D. Hilda hesitou no começo, mas assim que conseguiu a atenção da plateia leu as palavras de seu filho para todos os seus irmãos de fé. Conforme falava, sua voz gentil e segura entrecortou-se algumas vezes, mas o efeito foi maior na audiência: silêncio e lágrimas.
Seu marido estava com a mão em seu ombro, cabisbaixo, apoiando-a.
"Nosso filho foi amado por nós, mas não pelo mundo, nem por seus colegas, professores, autoridades. Como uma criança ser responsável por querer ser forte e igual aos seu inimigos? Infelizmente ele não voltará para casa depois da escola, nunca mais ouvirei sua voz, reclamarei de sua bagunça. E o que ele era? Além de meu filho, era filho de Deus! Em noites estranhas na espera de algo, pensei: 'Porque comigo meu Deus? Que fiz eu para merecer isso?' e hoje Ele me respondeu pela voz de meu menino: 'Deus não fica pensando nas escolhas que faremos. Ele já sabe, sempre saberá. Ele se importa com o interior. As mentiras e os muros são justificativas nossas para impedir a dor. O Amor de Deus é maior do que toda nossa estupidez."
Dois dias depois Lucas, o filho de Tadeu foi encontrado enforcado numa árvore, o corpo de João Lucas foi identificado, pois o adolescente tinha-o enterrado e feito um jardim em cima, em seu bolso um bilhete:
"Desculpem, mais tentei ser maior do que você, mas só me perdi fora de meu coração. Te amo para sempre João Lucas.
Perdoe-me!Te amo e não mereço."
FIM
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Agulhas nos Olhos: Uma história de dor e perdão
Short StoryUma tragédia se abate numa família. O que levou ao desaparecimento de um menino de 11 anos? Bullying? Homofobia? As respostas estão num arquivo em PDF que sua mãe descobrirá e porá em cheque suas crenças. O quanto sabemos sobre nossos filhos? O m...