Ele já conhecia os dois lados e, de verdade, pouco se importava com esse troço de linha, de bondade e de maldade. Não recebera um convite formal para o baile. Não usava smoking. Tudo tinha virado de ponta-cabeça e a saudade pungente que martelava seu peito era combatida com aventuras noturnas e ocupação mental. Não queria pensar no passado e nem lembrar do rosto de Vera quando beijava outra mulher. Vera não servia para seus lábios. Jogava o jogo. Curtia o barato. Em sua cabeça não existe esse negócio de que se fizer assim é coisa de bonzinho e se fizer assado é coisa de demônio. Para ele importa é fazer o que quer. Já fazia alguns anos que trilhava aquela vida maldita. Já tinha aprendido um truque ou outro. Já tinha trombado com vampiro novo e vampiro velho. Sabia que não era o único da espécie e que não estava sozinho daquele lado do manto.
Seu rosto fino e de traços bem definidos, eternizado aos trinta e dois anos, mantinha-se o mesmo desde que despertara no hospital. Despertara mudado, transtornado, sem manual, sem pai ou mãe, sem explicação alguma. O único que surgira para lhe falar fora um demônio vindo do inferno. Tinha mexido com sua cabeça. Tinha manipulado seus pensamentos. Tinha lhe usado feito lenço descartável. E ele tinha odiado aquilo. Cara! Como detestava ser usado, ser feito de marionete. Por conta desse ódio brutal tinha feito um único inimigo. Mais um que tinha chegado com fala mansa, tal e qual o demônio de uns anos atrás. O demônio ainda tinha jeito e cara de capeta e não estava se fazendo de bom moço. Já o segundo era pior que o capeta, mas tinha aquela pose de sujeitinho bacana que quer te dar um abraço, estender a mão. Uma armadilha ambulante.
O vampiro bufou repassando as lembranças. Um único inimigo e nada mais.
Tinha tirado o cara da cabeça por conta dos últimos eventos. Estava acompanhando tudo pelos jornais e televisão. Tinha dado a louca no mundo. No mundo, não. Tinha dado a louca no Brasil. Uns diziam que a bruxa estava solta. Ele sabia que não era nada disso. Chegou a pensar que pudesse ser ou-tra guerra daquelas que viu em Belo Verde. Um furacão que às vezes acontecia bem debaixo do nariz dos mortais sem que a maioria tivesse ciência do que ocorria ao seu redor. Ele não tivera a chance de ser um tontão insensível. Fora pego na unha por um cão capeta e tinha virado aquilo. Um sem-alma. Um não-morto. Um recusado nos portões da morte, um que aguardaria indeterminadamente a chance de viver sua Aventura.
O vampiro sentou-se mais para a beirada. Os pés batiam nas paredes externas do edifício. O vento passava ligeiro agitando seus cabelos. Suas roupas negras deixavam-no mimetizado em meio ao céu escuro. Mesmo estando no telhado do prédio, no trigésimo quinto andar, conseguia enxergar bem o calçamento público há mais de oitenta metros de altura. Também não tinha medo de uma rajada mais forte derrubá-lo da beiradinha. Sua cabeça não se preocupava com isso. Um sorriso fino enfeitava sua boca. Ele tentava entender tudo o que se passava. E sabia que como ele alguns de sua espécie estavam curiosos acerca daquele acontecimento. Daí lembrar tantas vezes do cara pentelho. Tinha certeza de que ele sabia exatamente o que estava se passando. Os telejornais lançavam uma matéria atrás da outra feito metralhadora cuspindo balas. Falavam de vampiros. Falavam de gente morta e sem sangue. Falavam de alienígenas. Falavam de tudo tentando encontrar a verdade por trás daquela cadeia de fatos fantásticos. Neve em Osasco. Sepulturas, às centenas, violadas. Tinha até decorado o nome dos cemitérios. Dois. Também em Osasco. Cemitério de Santo Antônio e Cemitério da Bela Vista. Estava enjoado de ver a frente dos campos santos estampadas nas chamadas dos noticiários. Diziam que até do necrotério tinham levado mortos embora. Não tinha sido um arrastão. Não. A coisa era mais complicada. Testemunhas chorando, gente se cagando de chorar era exibida nos canais de TV Uns diziam e juravam por tudo que era sagrado que tinham visto mortos saindo pela frente do cemitério. Ninguém confirmava nada. As autoridades tinham entrado num mutismo delator. Mas o lance era que também ninguém tinha filmado morto nenhum capengando pelas ruas. O fato é que muitos corpos tinham simplesmente evaporado. Um médico de pronto-socorro, que não permitia ser identificado, tinha dado uma entrevista e sua voz
alterada era repetida umas quatro vezes por dia nos telejornais. Ele dizia que um homem tinha ressuscitado. Um negócio meio de Lázaro, o paciente estava mortinho da silva e de repente, puf! estava acocorado no chão da sala de atendimento, com os olhos esbugalhados e vivinho da silva. O médico repetia, e a edição repetia mais setenta vezes, o trecho de entrevista: "eu pensei que tinha me equivocado, mas quando coloquei o estetoscópio no peito dele, Deus do céu, o coração não batia! Não tinha pulso, nada! Estava morto do ponto de vista clínico, mas estava lá, agachadinho, vivo, assustado".
É claro que depois dessa entrevista ninguém mais achou o médico para desmentir ou confirmar. E ficava esse disse-que-disse em todos os canais. Tinha aparecido gente dizendo que tinha visto lobisomem. Não demorou para o pessoal da sátira aparecer com historinhas de sacis e mulas-sem-cabeça.
O que deixava o vampiro intrigado era aquela história que tinha começado no Rio Grande do Sul, com a coisa da caravela descoberta no fundo das águas. Diziam que tinham tirado sete corpos do fundo do mar. A história estava vazando por todos os lados. Diziam que um dos despertos podia fazer chover, o outro fazia nevar e mais outro acordava os mortos. Era uma profusão de boatos. Para ele não restavam dúvidas de que os sete existiam. Mas esse treco de fazer nevar... de despertar os mortos... isso era novidade. Queria entender direito essa história. Outro dia as TVs e sites da Internet exibiam o rio Pinheiros congelado na altura do shopping Eldorado. Aquilo era magnífico. Ele nem conseguia entrar numa casa sem ser convidado e outro podia fazer aquilo. Como? Como? Sua cabeça pegava fogo.
O vampiro levantou-se e saltou para baixo. Seu corpo desceu, despencando no ar, aumentando de velocidade. De repente a queda parou. O vampiro tinha alcançado uma saliência no prédio, uma mureta que guarnecia algumas sacadas mais destacadas do vigésimo andar para baixo. Rodou o corpo voltando a ficar de pé e na altura do décimo quinto andar parou na sacada, com leveza impressionante. Olhou para dentro do apartamento. As portas corrediças de vidro estavam abertas. Tudo certo, como planejara. Aquela casa não era selada para ele. Seu jogo de sedução fizera os lábios da mulher pedir sua vinda, fazer o convite. Era como se um muro invisível se dissolvesse. O vampiro colocou o pé para dentro. Vagou pela sala escura e vazia. Atravessou o corredor chegando ao quarto principal. Empurrou suavemente a porta. Seus olhos brilharam quando a viu deitada na cama. Lingerie. Corpo exuberante. Cabelos negros longos. Ele caminhou sem nem mesmo que o ar se desse conta. Estendeu suas mãos brancas na direção da mulher. Seus dedos tocaram sua perna com leveza. Depois deixou a palma inteira acariciar a coxa da mulher. Deitou o corpo para a frente e beijou o pescoço da vítima. A mulher, sem agito nem susto, despertou e abriu os olhos. Fitou demoradamente o homem pálido ao seu lado. Seus lábios separaram-se sensuais. A mulher sorriu. Abraçou o vampiro sem saber que era esse seu último abraço. Chamou seu nome sem saber que era a última vez que falava.
— Samuel.
O vampiro debruçou-se novamente sobre a mulher. Dessa vez suas mãos não eram mais suaves nem carinhosas. Agora seus músculos estavam tesos e determinados. A boca se abriu e os dentes pronunciados encontraram a pele da vítima. As presas cravaram firmes e indefectíveis. Samuel não se importou com os gemidos de dor. Samuel não se importou com o sacolejar da mulher. Samuel não se importou com nada.
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Os Filhos De Sétimo (saga O Turno Da Noite Vol.1) André Vianco
VampirO Turno da Noite surgiu para agitar o submundo. Quatro vampiros recém-trazidos para a vida noturna são atraídos por um vampiro ancião que vive em São Paulo. Ignácio oferece proteção e ensinamentos para os novatos em troca de suas habilidades para lu...