CAPÍTULO IV A FARINHA ESTRAGADA

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Tão profundo foi nestas reflexões que nem ouvira:

_ A benção, vôinho!? Ô vô! Me dê dez reais! Me dê dez, vô! Era Caíque, filho de Raimundo que chegara correndo antes dos pais para pedir um agrado ao avô sem que fosse repreendido por Dilce como sempre.

E seu Mario que sempre dava cinco se o neto pedisse dez, neste dia deu vinte. E nem viu. Se tivesse à mão uma nota de cem entregaria ao menino sem perceber.

Rapidamente, antes que seu Mario se arrependesse Caíque saiu correndo feira adentro.

Maria despertando do sono relinchou.

Era também o despertador de seu Mario, de seus devaneios.

Pouco tempo depois Raimundo e Dilce surgiram. As vistas de seu Mario foram tardias em perceber que quem mexia na farinha como perita a analisar o produto era a própria nora. Só deu conta quando o filho deu-lhe um tapinha nas costas:

_ Benção, Pai!?

_ Deus lhe abençoe!

_ Pai, que farinha feia é essa?

_ Oxe!

- Farinha suja, seu Mario! Completou Dilce, não admira não ter vendido nada!

Agora era seu Mario que tomava nas mãos a farinha e botava um punhado na boca. Só não cuspiu porque lembrou o preço que pagara. Mas realmente não tinha a conhecida qualidade da farinha fornecida por Totonho. Que podia ter um monte de defeito, mas nunca tinha feito uma coisa dessas ao amigo. Uma relação de tão longa data! Não é possível estragar assim. Alguma coisa devia ter acontecido.

E de fato ocorreu. Aproveitando-se da cegueira parcial de Seu Mario os empregados de Totonho, sem o conhecimento do patrão, trocaram a saca no trânsito entre a lojinha e o lugar onde ficou Maria com o intuito de vendê-la por melhor preço no Mercado Municipal de Riachão.

-Mas não é possível... ficou repetindo Seu Mário.

-Calma, pai, o melhor a fazer agora é recolher esta saca e não deixar aqui pra vender, que vai queimar teu filme.

-Verdade, Seu Mario, bora pra casa, que já passou da hora de comer... depois o senhor vê o que faz com essa farinha, ponderou Dilce.

Raimundo fechou o saco e botou nas costas.

Seu Mario tomou Maria e foram pra casa.

Aos sábados, Dilce trazia mais comida, e todos almoçavam em casa de seu Mário. Menos Caíque que saía comendo tudo quanto é coisa que em Bate-Pau não se achava na semana.

Depois de dar de comer à Maria, seu Mario se sentou para comer, e apesar da fome que era muita, pouco mexeu no prato. Tinha cabeça só para pensar no anel. Ainda assim, de vez em quando, lembrava da saca de farinha e ficava bravo. Era quando vinha à memória os quinhentos mil reais, e planejava comprar o Mercado de Riachão e deixar Totonho sem eira nem beira, ou tocar-lhe rumo à Maceió, ou mandar-lhe prender. Afinal de contas, agora, era coronel Mário quem mandava, ou melhor ainda, o rei.

- Fique bravo não, pai!

- Tô bravo não... tô é com ódio, mesmo!

Mas Raimundo achava graça na braveza do pai. Sabia da natureza do homem que nunca havia lhe dado sequer uma palmada. Era só aquela rabugice que lhe era pertinente.

- Pior tô eu, que perdi toda a colheita este ano, pai. A falta de chuva acabou com meu milhinho, que dó!

A falta de chuva não só comprometia o sucesso da plantação de Raimundo como também afetava a todos os produtores rurais de Pé de Serra. Mais um pouco e muita gente ia passar fome. Chuva é tudo pra quem vive da terra naquele lugar que não tem outro jeito de conseguir água.

Seu Mário sabia disso. Sabia que a situação era crítica, sabia que o dinheiro não dava pra nada, que daí a pouco não seria só a água do que seriam privados. Comida também ia faltar. A refeição que acabavam de fazer já sofria os reflexos daquela crise. Era pouca comida no prato, quase nada. Raimundo, que comia muito, terminava de dar a última garfada saboreando o alimento num misto de satisfação, raiva e constrangimento. O pai sempre lhe provera enquanto trabalhou mesa farta, e sentia agora o dever de retribuir. Contudo, o tempo era difícil. Então, seu Mário lembrou novamente do anel e pôs a mão no bolso para alisá-lo.

-"Quinhentos mil!"-pensou.

Tirou a mão do bolso e coçou a cabeça. Levantou, encostou-se ao batente da porta e ficou olhando para fora. Indagava a si mesmo se seria boa coisa contar ao filho e à nora sobre o anel.

Dilce percebeu a inquietude do sogro:

- Tá avexado do que, homem?

- É nada não!

- Se é a farinha, deixa pra lá...

Não era a farinha, seu Mário só pensava no anel.

-"Quinhentos mil, quinhentos mil!"


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