CAPÍTULO XVI A DISENTERIA

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Tamanha era a ansiedade que Seu Mario acordou antes mesmo que o sol. Vestiu-se, e ainda em jejum foi despertar Maria.

Cutucou ela, que neste momento estava sonhando com um belo alazão que admirava quando era mais nova. Maria abriu os olhos e quando pensou estar diante de seu belo namorado, fez biquinho para beijá-lo quando viu o velho caquético a encarar.

_Vamos, preguiçosa, vamos.

Maria tentou dar uma mordida nas mãos do homem.

_ Que é isso, mulher! Tá maluca é? Oxe, dormiu com a macaca foi? Eu sei que ta cedo, fia...Mas hoje é o dia de a gente salvar a família toda. Vamos vender o anel, e ajudar Raimundo e ajudar a gente também. E ainda por cima, vamos nos livrar do chato do delegado e de Dona Chica. Acredita que aquela "mala sem alça" pegou o papel com o endereço do homem que vai comprar o anel e agora é outra que quer me atormentar.

Maria, que tinha o coração maior que o mundo, se sensibilizou com a história, despediu-se em espírito do alazão desejando revê-lo em seus próximos sonhos e levantou-se.

Quase meia hora depois que saíram, ouviu-se um grunhido que vinha de um dos dois. Mais exatamente da barriga de um dos dois, e seguido o som, um cheiro insuportável. Seu Mario quis acusar a Maria, mas sabia que ela não acreditaria na história. Parou, desceu da burrinha e começou a se contorcer.

Maria que nunca tivera nenhuma desarranjo intestinal olhava para aquilo sem entender, achava que Seu Mario estava em algum ritual, sabe-se lá o porque. O velho agachou-se e gritou, um berro que acordaria a todo mundo se estivesse na cidade. A sorte é que o lugar onde estavam era ermo em estremo. E como ainda faltava um pouco para amanhecer por completo o velho não se importava muito com o escândalo. A cólica era terrível, não tinha como conter os espasmos. Quando Maria entendeu que ele estava com dor e não ficando louco começou a preocupar-se.

Então Seu Mario deu dois passos para a direita- não conseguiria dar mais nenhum- arreou as calças e ali mesmo começou a defecar. O mal cheiro era tanto que a burrinha afastou-se uns quarenta metros e ainda reclamava com o homem.

Quando conseguiu recompor-se, tentou seguir viagem. Mas cinco minutos depois repetiu-se a cena de horror.

Não havia como prosseguir. As cólicas iam e vinham enquanto Seu Mario ficava subindo e descendo de Maria a cada vez que a natureza agredia-lhe. Até o ponto em que ficou todo assado, aí já não subia mais, ia caminhando lentamente, parando, agachando, se contorcendo. A viagem a Riachão, que até ali tinha demorado trinta minutos custou uma hora no retorno à Pé de Serra.

_ Foi praga daquela onça de Dona Chica, Seu Mario vinha acusando no caminho. Com uma das mãos comprimia a barriga e com a outra cerrava o punho no ar.

Passou o dia sofrendo aquela disenteria.

Chegou em casa antes que Dilce trouxesse o café. E naquela manhã viera acompanhada de Raimundo que segundo ela, não tinha nada mais pra fazer senão acompanhá-la. Acharam Seu Mario internado ao banheiro e gemendo.

Dilce arrumou a mesa e se sentou para comer. O tempo de escassez impunha que agora repartissem do mesmo café. E como estivesse em jejum e cansada pela viagem, tratou logo de comer. Raimundo montou guarda de frente à porta do banheiro e começou a arreliá-lo.

_ Painho, sua benção? Tá tudo bem aí?

_ To não, to numa disenteria arruinada...

_ Oxe, então hoje Seu Mario é rei, Dilce! E caiu na risada.

Era assim mesmo que o pai tratava as dores de barriga de Raimundo quando era criança. O que o irritava profundamente. Aquela seria a oportunidade em anos de vingar-se.

_ Painho, quer que eu lhe pegue a coroa? Já que vai passar o dia reinando em seu trono...

_ Arre, moleque, deixa eu sair daqui pra tu ver só uma coisa!

Raimundo caía na risada e de vez em quando dizia:

_ Vossa majestade quer mais alguma coisa em seu trono?

Seu Mario que tinha o anel no bolso associava as palavras do filho ao sonho de outro dia. Gostava das palavras "reino" e "trono" e "coroa" que lhe dirigia. Mas a fantasia logo era desfeita quando a crise de diarréia se intensificava.

Depois de muito tempo conseguiu sair do banheiro, e totalmente debilitado. E aí o filho quis saber de verdade o que tinha ocasionado aquele piriri.

_ Não sei não. Acho que foi um quebra-queixo que comi na rua. Ou então...

_ Ou então o que pai?

_ Nada não, deixa pra lá...

Raimundo aproveitou aquela visita para contar ao pai que por causa da seca e da falta de dinheiro que vinha enfrentando tinha vontade de ir a São Paulo. Conhecia dois ou três amigos que mudaram-se para lá em busca de vida melhor e trabalhavam na construção civil. Na verdade, não sabia de outra saída para o momento que enfrentavam. Olhava o céu e o achava cada vez mais seco.

_ E em São Paulo é vida pra você meu filho? Aquilo é um inferno. Todo mundo lá só pensa em trabalhar e esquece de viver.

_ Pai, sem trabalhar não há como viver, também.

_ Raimundo espere só um pouco e vai ver que melhora aqui. Já enfrentei nesta vida tanta seca e não desisti. Nosso Senhor sempre teve misericórdia de nós.

_ Se chover logo eu fico, meu pai, senão vou-me embora.

_ Espera que de um jeito ou de outro as coisas vão melhorar, você vai ver. Antes do que você imagina.

O dia de Seu Mario foi assim. Da cadeira para o trono, do trono para a cadeira, como Raimundo dizia.

_ Vamos ao Pronto Socorro, majestade! Raimundo brincava com o pai.

_ Pra me fazer parar de cagar não precisa de doutor, preciso é de chá de folha de goiabeira. Que pra arruinar não tem uma aqui em Pé de Serra, uminha pra contar história.

E o filho caía na gargalhada.



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