PERNILONGO
No ano de 1.987 o rio Meia Ponte esbanjou fartura de peixes na região de Goiatuba/Joviânia e a jusante destas cidades. Acontecera um acidente radioativo em Goiânia, com uma cápsula de césio usada em raio "x" espalhando histórias dos malefícios nucleares do Césio 137. Até parecia duma bomba atômica ter explodido na cidade espalhando horrores. Diziam da chuva ter lavado o chão do local do acidente, os rejeitos radioativos drenados para os córregos e daí para o rio Meia Ponte. Por conseguinte os peixes tinham sido contaminados. Quem consumisse estava ferrado, além do câncer certo o infeliz passaria a brilhar no escuro, com fácil identificação e rejeição de todos. Daí a discriminação de quem estava contaminado era latente. Uma conseqüência boa foi a diminuição dos pescadores no rio e os peixes aumentaram, fazendo fartura. Nesta época eu estava delegado de polícia na cidade de Goiatuba, investigando os mais diversos crimes, inclusive os ambientais. Num final de semana resolvi pescar no rio Meia Ponte, chamando os amigos Benício e Raul. Fomos para um local conhecido, onde havia umas figueironas com sombra abundante.
Deixamos o carro na sombra delas e ajuntamos nossa tralha na canoa e jogamos n'água. Iniciei os preparativos para funcionar o motor de popa, uma velharia de doze cavalos, marca Jhonson, fabricado no Canadá em 1.932. Não houve meios de fazê-lo funcionar, nem a poder de promessa ou reza braba. O jeito foi remar a montante apointando ali por perto mesmo e tentar fisgar algum piau, pacu, piapara e quaisquer outros. Joguei o anzol no meio duns rebojinhos e a linha começou a esticar, como se um peixinho estivesse puxando. Aquilo ia e vinha, e às vezes enganava com folha rodando, ou talvez fosse mesmo um lambari de fuzarca. Pela experiência, deveria ser miuçalha como as piabinhas do rio mexendo de madorna...mexiam, mexiam, mas não engatava uma corrida. Pescar exige paciência e persistência com a velhacaria dos peixes. Como de vez em quando fazia menção de engatar uma corrida, pensava num peixão e ficava atento. Isto já ia numa maçaroca de minutos sem resultado positivo, fazendo-me distraído a ponto de descartar o ladrãozinho de isca. Aí aconteceu um cutucão mais substancioso, fiquei animado.
O peixe ia correr e eu daria uma fisgada daquelas, pegando o malandro no contra-pé. Permaneci ligado em qualquer movimento na vara, mesmo se fosse o vento, não deixaria escapar. A minha atenção era total no peixe, mas nisto um pernilongo, parecendo um Boing 747 pousou no meu braço segurando a vara. Se fizesse algum movimento para me livrar dele, espantaria o peixe. Fiquei teso nas correias, suportando o ataque do inseto, ligado na corrida do peixe. O pernilongão poderia esperar o que lhe aguardava. Sua batata estava assando. A ferrada do bruto pareceu um prego mandado no braço, mas fiquei firme, se desce um tapa, perderia o peixe. Passou a primeira ferroada, permanecendo uma coceirinha gostosa. Entretive com o peixe fazendo "fusquinha" querendo correr, mas não corria. Finalmente nem senti mais a dor ou a coceira da ferroada. Isto levou uns dois minutos. A farra do anzol cessou, talvez o esperto ladrãozinho de iscas tivesse limpado meu anzol. Quando olhei novamente o braço, percebi o tal pernilongo parecendo um avião de carga liquida enchendo os tanques.
A barriga era tal qual um papo de anjo vermelho se enchendo na maior folga, como se abastecesse no quintal da casa dele. Parei de pescar porque os peixes pararam com a farra no anzol, devia ter mesmo acabado a isca. Fiquei prestando atenção no tal malandro se refestelando em sangue alheio. O meu braço parecia se afinar na curtição do intruso. Três minutos depois o bicho deu uma afofada no ferrão. Pensei de ele cessar a operação de abastecimento não autorizada, mas momentaneamente consentido. Que nada, o tal apenas mudou a altura de sua prospecção e continuou sugando. Deu um tremelique lá nele e saiu um pontinho preto no final de seu tanque. O safado estava esvaziando o compartimento de carga para furtar mais ainda. A barriga dele estava transparente e enorme, com volume três vezes maior do restante do corpo. Desisti de dar-lhe uma bofetada e passei a duvidar dele levantar vôo com toda aquela carga. Finalmente o folgado parou a operação de carga. Recolheu a mangueira de meu braço, tinha feito um oco de causar sangramento.
O folgado deu uma leve abaixada sobre a gota de sangue se lambuzando e fez as manobras iniciais de alçar vôo, levantou as patinhas da frente, erguendo a cabeça. Como pernilongo tem seis patas, o bicho levantou a frente do corpo, mas seu imenso abdome vermelho continuou apoiado na minha pele. O tal ajeitou as patinha do meio, trazendo-as para junto das traseiras, como reforço. Parecia um caminhão trucado com carga superior à sua capacidade. Imaginei o ronco do motor dele, nalguns gemidos tentando erguer a carga com as perninhas emborcadas no peso, mas não erguia nada, nem aluía. Confabulei: "roubar alimento é até aceitável, mas não dar conta de levar é muito feio." Ele ligou as turbinas num barulhão como um jato levantando vôo. A ventania de suas asas mourejando vôo balançava-me os pelos em riste. Finalmente se abaixou dobrando as seis pernas, firmou as duas últimas nos cabelos para ajudar o impulso. Soltou o freio de supetão e deu gás no acelerador.
O zunido das asas modulava o som. Saltou para a decolagem na aventura do vôo. Era um pernilongo tamanho mamute, dando para vê-lo até bem longe. Saiu pesado estremecendo os ares, mas não conseguiu sustentação de vôo e foi perdendo altura lentamente. Voou pouco mais de dois metros à montante e amerissou. Ainda tentou patinar as asas sobre a água, mas apenas formava microondas à sua volta como se uma pedra pequena fosse atirada no rio. Não rodou dois palmos e um pacu aflorou abocanhando-o. Ainda vi uma pequena mancha vermelha dissolvendo rapidamente, possivelmente quando a bolsa de seu abdome estourou nos dentes do predador. Senti-me vingado como se a polícia houvesse capturado um bandido que acabava de me roubar. Naquele dia não pegamos nada e voltamos para casa com o embornal vazio. Todos com o dedo atolado.
Pois é!
Gyn, 26JAN05
Delegado Euripedes III – OAB 31.932
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PERNILONGO - dengue
Short StoryA paciência dum pescador ao parar a pescaria para apreciar um baita pernilongo pousado em seu braço sugando à vontade.