O que há de ser o infinito de nossas emoções na sociedade raquítica da qual vivemos? Dizem que o ser humano é bom por natureza. É... Talvez ele o seja mesmo. Coisa que duvido. Paradoxo. Se sei de mim? Claro que sim! Não sou humano nem inumano. Sou apenas uma coisa abstrata, afiada, objetiva e subjetiva, confusa. Alguns me chamam de espírito. Outros de monstro. Mas eu, eu prefiro ser chamado de Consciência.
O que é ser humano? Talvez seja ser simplesmente... Humano. O que é humano? Eu que sei? Imagina! Não sei de nada. Sei de Lara. Lara... Linda Lara. Adoro essa mulher. Ela me deu a vida, afinal. Talvez só eu possa sentir suas dores mais vorazes. Só eu a suporto.Lembro-me de um sonho:
Era noite fria. Uma mulher, camuflada pela escuridão, percorria a estrada. Voltava para casa. Seu corpo, coberto por mudas de roupa, como que para tampar o frio que fazia. Garoava. Lembro-me do cheiro de sangue. Era doce e acre. Pois bem, era sangue. As pernas dela cambaleavam tontamente. Estava exausta. Precisava descansar. Precisava descansar. Precisava descansar. Precisava descansar. Precisava descansar. A noite cortou o ar como um tapa em seu rosto. (Eu o senti! ). Precisava descansar. Depois era um chute em seu estomago. Vômito. Precisava descansar. Ouvia vozes em sua cabeça. Vozes finas gritavam em seus ouvidos. A dor que sentia transbordava na rua. Seu sangue coloria o asfalto. Precisava descansar. Via somente aquele rosto medonho perto do seu. Queria gritar. Eu queria gritar. Mas minha força não se passava de algodão.- Nós precisamos descansar.
Quando eu, Consciência, pensei que ela iria desmaiar ( ou seria eu? ) o som traumatizante do despertador tocou. O sonho se foi. Se foi. Ela abriu os olhos. Lara bocejou. Preferiria nem o sono, nem a vida. Queria o sumiço... Seu marido, fingindo que dormia, a observava. Que homenzarrão era aquele. Hiperprotetor. Um cavalheiro nato. A amava como jamais amou alguém. Eu sentia.
Sou ele.
Lara havia acordado com um leve sobressalto. Coisa que vinha acontecendo muito ultimamente. Eu apenas a observei espantar o sono e seus fantasmas. Enquanto eu fingia que dormia, Lara balançava a cabeça e prendia suas tranças em um coque alto. Como ela era linda! Será que sentia minha admiração por ela? Não duvido... Mas tenho medo. Faz alguns poucos dias que ela tem estado estranha. Como que abduzida por alienígenas e ficado por um tempo longo no espaço para, enfim, retornar à Terra. Sinto-me preocupado.
Para Paulo, Lara era sua vida. Seu resquício de dignidade. A amava tanto... Mas se sentia perdidamente longe de sua identidade. Era como se, ele, um homem branco e vindo de família tradicional e classe média, fosse impedido de entender a negritude de sua mulher. E ele tentava entender! Claro que tentava. Mas algo o impedia. Sua mulher lhe dizia para desconstruir. Não sei bem se ele entendia isso.
Dizem que o instante é pequeno. Eu não acho. Não sou ligado ao tempo. Para mim, tempo é coisa que humanos inventaram. Sou ligado a pensamentos. Situações, como prefiro chamar. Para uma consciência ser livre é preciso desgarrar de seu corpo-mãe, voar.
Desgarrar de seu corpo-mãe. Sou livre.
Contudo, voltemos aos nossos humanos. Os dois se olharam fingidamente. Ele, tentando parecer alegre. Ela, querendo ser alegre. Foi rápido, coisa de segundos. Logo foram embora. Ele aos sonhos, ela ao trabalho.
Mas antes, uma pausa.
Pelo que vi no mundo, há uma força sobrenatural que assombra os indivíduos que me revolta tremendamente. Sim, tenho revoltas. Afinal, saí de ser humano. Se eu não fosse um pouco humano, não seria eu. Não seria eu. Vejo que todos criam classificações para si, não entendo tão bem isso. Entendo que somos diferentes em nossa igualdade. Dizer que somos os mesmos é mentira.
Sou ela.
Eu precisava correr para o trabalho antes mesmo que Paulo me perguntasse o que estava acontecendo. Não aguento essa pressão todo dia de manhã. Meu corpo ainda dói. Não quero nem viver. Sinto-me até vazia. Como se minha consciência houvesse me abandonado. Será que havia mesmo? O mundo nunca me quis pensante, afinal. Sou, para eles, inferior e frágil. Não é por acaso que fizeram aquilo comigo. Já nem forças tenho para lutar. Ser preta e pobre, ainda mais mulher, é a mesma coisa que assinar meu atestado de óbito nesta vida. Se meu marido me entende? - Não. Por isso nem contei a ele. Aquele dia... Dia que passei a noite na rua, que acordei com estranhos me chamando. Acudida na surdina. Se me dizes para mascarar, então mascaro. E me camuflo de vento. Sou oca.
Essa é Lara. A coisa da qual me desprendi. Ela sente minha falta... Queria ser mulher igual ela. Não sou. Nem homem, nem mulher, nem qualquer outro que possa existir. Sou Consciência.
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Mulher Oca
Short Story"O vazio não vem para quem escolhe, ele se instala em quem sofre." - Se você nunca se sentiu oco, entenda como é se sentir assim pelo ponto de vista de Lara e Consciência... " - A vida me roubou o que eu tinha de mais precioso: Minha identidade...