(1986) Eddie: Feliz Ano Novo

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Ano novo de 1986. O ano em que a minha vida mudou. Ah, porra, eu com essa mania de ser dramático, de armar um espetáculo, de me enxergar protagonizando meu próprio roteiro. Minha vida mudou uma porrada de vezes. Ela muda o tempo inteiro, pois não nasci pra estabilidade. Minto, não nasci na estabilidade. Falar que não nasci "para" dá a entender que a quero, e não é possível saber se quero algo que nunca tive.

Mudo o tempo todo.

Mas, apesar disso, minha vida definitivamente mudou em 1986. A diferença é que não mudei com ela.

Comprei pipoca, sentei na primeira fila e fiquei esperando a tragédia acontecer. A merda é que, quando você é o protagonista e, ainda assim, se senta para assistir, coisa boa não pode sair disso. É, não saiu.

Foi um ano todo atípico, em que eu virei do avesso, me tornei espelho de mim mesmo. Direita virou esquerda, jogo do contrário. Quando precisei de ação, eu reagi. Quando tive de ser eu mesmo, eu me calei. Quando precisei brigar, eu só senti.

Não sei por que fiz isso. Não sei se é a minha natureza ou se me arrumei desculpas completamente podres. Se era realmente inevitável ou se poderia ter feito diferente.

Porque, veja bem, não importa o que digam. O protagonista sou eu. Essa história é minha. Ou, ao menos, deveria ser.

A porta se abriu e houve uma confusão de abraços e cumprimentos. Cheguei lá em dois segundos. Naquela noite, eu tinha alguma ilusão de comandar o show.

-Porra, você veio! – Eu disse, a abraçando.

-Como você veio? – Singe perguntou.

-Vocês não vão acreditar! A Rê drogou a minha mãe! – Ela disse, as bochechas vermelhas do frio, acelerada pra caramba. – Ela colocou sonífero em um vinho, eu dei pra ela e dali a pouco ela estava roncando na poltrona! Ai, meu Deus, e se eu matei a minha mãe?!

Ela concluiu com uma risada, e foi uma delícia assistir. Tipo, ela sabia que havia feito merda, mas, antes da provável ressaca moral no dia seguinte, estava pouco se fodendo pra isso. Ela desafiou o sistema, ela desobedeceu uma ordem, ela fez o que quis. Ela se ouviu. Pela primeira vez na vida, ela se ouviu sem que ninguém a comandasse, sabe? Foi a mão dela que entregou a taça do vinho. E isso era sensacional.

-A gente bebe a isso – Eu babacamente respondi, e na hora totalmente errada, pois todos falavam com ela ao mesmo tempo e porra, óbvio, lógico que ela não ia sair do grupo pra beber qualquer merda que fosse comigo. Aliás, acho que ela nem me ouviu, porque na mesma hora a Kate lhe entregou uma folha de papel e começou a dizer alguma coisa sobre algo que ela tinha que decorar.

O Ben, meu melhor amigo quando eu era garoto, adorava filmes de guerra. Tinha uma parada de recuar e reorganizar as tropas para avançar novamente. Foi mais ou menos como eu me senti. Me retiro temporariamente, planejo uma nova linha de ataque, vejo qual será a minha próxima ação. E aí você me diz: "Um ano inteiro havia se passado. Um ano de inércia. Por que justamente aquela noite era tão importante?"

Porque um ano inteiro havia se passado e talvez, só talvez, eu estivesse errado. E também porque eu já havia bebido bastante.

Fiquei olhando, à distância, ela se sentar em um sofá com a folha de papel que a Kate lhe entregou. Cara, ela estava linda. Era a menina mais linda do mundo. Havia algo diferente nela, o princípio de alguma coisa que estava acordando ali dentro e eu daria a minha vida para ajudá-la a trazer isso à tona. Ela estava viva. Estava se transformando. Dia a dia, naquele último ano, ela mudou um pouco. Mas não uma mudança que a afastasse dela mesma, mas sim que a trouxesse para o seu centro, sabe? Para quem ela realmente era. E então me toquei que estava preso na armadilha novamente, estava sentado na primeira fila, comendo pipoca, sendo o protagonista demente que assiste ao próprio filme. Resolvi acabar de uma vez com aquela merda.

Fui à cozinha, peguei duas latas de cerveja, e estou quase chegando ao sofá quando me seguraram pelo braço.

-Nem fodendo, não faça isso.

Era o Tom. Com outras duas latas de cerveja. Enquanto eu parava para escutar, ele passou por mim e, antes que eu me desse conta, estava sentado ao lado dela, lhe entregando uma das latas.

Recuar, reorganizar, avançar. Fiquei cercando o sofá à distância, esperando a minha oportunidade. Que não chegava nunca. Droga, eram meus amigos. Dois dos melhores. E eu me sentia tão fantasticamente excluído que não conseguia me aproximar, como se houvesse um campo de força em torno daquele sofá. Via o relógio avançar, tinha a impressão que as pessoas falavam comigo, que puxavam assunto, mas me via incapaz de acompanhar, de focar, de responder. Ia dar meia-noite, e eu havia prometido para mim mesmo que o primeiro beijo dela de 1987 seria meu.

Cara, eu só queria um beijo. Àquela altura, era tudo o que eu pedia.

E então o relógio bateu meia-noite e eu vi que eu pedia muito.

Eu não teria nada.

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Esse POV faz parte da Semana do Eddie, que acontece até dia 2 de janeiro no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora