Capítulo único

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Estou há incontáveis horas, minutos, dias ou semanas encarando o vazio na cama que habita meu lado. Ele parece zombar dos meus olhos vidrados que anseiam no próximo piscar uma magia - a de que você se materialize ali.

Olha a bosta que você fez. Não, sério.

Você largou um vazio de sapatos, um vazio no armário, um vazio de toalha molhada em cima da cama, um vazio de marcas de copos em cima dos móveis, um vazio de aroma de madeira nas minhas roupas, um vazio de arranhões de barba mau feita, um vazio de pernas mornas, um vazio de pilhas de livros e CD's no chão, um vazio de corpo que está me dando pesadelos. Você entrou, virou tudo de ponta-cabeça, estourou minhas paredes e fez com que cada aresta, cada vértice, cada cor e cada cheiro dessa casa gritasse incessantemente você.

Mas apesar de encher boca, peito e coração para lhe cobrar, não te culpo. Fui eu que quis assim.

Carinhosamente te expulsando com minha indiferença, avermelhei teu rosto, envenenei sua alma e te arrastei pra fora daqui, mas não te arrastei pra fora de mim. Com amor, abri seu caminho para achar alguém que suprisse o que você precisava, te desse o que eu não podia dar. Mas não te tiro de mim, ainda deixo teus olhos guardados no peito, teu rosto apertado contra o ventre e teus cabelos deslizando entre meus dedos, mesmo que seja só fingimento da alma.

Tá insuportável sem você aqui, rapaz. O sofá me agarra, a cama se remexe e a cozinha tem o aroma dos seus pratos preferidos. A janela reflete dois quando um olha, e meus sapatos sentem falta da companhia daquelas botas meio coturnos. Minha meia-calça pendurada numa das portas do guarda-roupa está morrendo de saudades daquela gravata azul e a cama não é a mesma sem aquela mancha d'água gigantesca. Tem um pedaço da casa faltando.

Não sei se posso deixar que meu egoísmo te sequestre uma vez mais. Não sei se posso agarrar teu pulso e pedir que volte a ser parte do meu papel de parede, meu cobertor, meu travesseiro. Eu nunca te amei como você me amou, e você merece mais que isso. Me odeie, me deteste, mas promete que vai ser feliz, vai, mesmo tendo fugido com seis quintos da casa.

Mas, sabe, aprendi uns truques pra mascarar sua ausência. Posso puxar os travesseiros para o meio da cama, posso comer na sala e trabalhar na cozinha, posso muito bem ver TV sentada na cadeira do quarto e colocar todas as minhas coisas e pedaços no lugar.

Mas não quero. Hoje quis deixar você me invadir, entrar na casa com minha permissão e sair revirando tudo numa euforia louca uma vez mais. Assim sinto você quase ali e, para mim, já está bom o suficiente.

Suspirei enquanto afundava o rosto no travesseiro. Me arrastei para fora do colchão - quase que por força do hábito tentando não sacudi-lo muito para não te acordar -, enfiei o primeiro vestido que encontrei pelo chão, apertei uns chinelos nos dedos frios e saí de madrugada para caminhar pela rua. Parei ao lado do poste de luz, sentei-me no meio fio e ali fiquei.

Não dá mais para ficar em casa, rapaz. Não aguento mais aquilo sem você. Não aguento mais conviver com um ausente, tendo a todo momento minha atenção levada às lacunas espalhadas pela cama no quarto, pelo sofá da sala, pela mesa da cozinha. Tá impossível fazer sozinha tudo numa casa de dois. É impraticável, rapaz. Agora eu sei.

Mesmo assim, sei que vou voltar para casa quando o sol raiar, entrarei de fininho numa brisa matinal pela porta, abrirei a persiana da cozinha e vou preparar o café da manhã descalça, largando de propósito os chinelos na porta da cozinha. Só para você tropeçar. Ainda assim vou preparar aquele café, secando uma xícara em açúcar e abandonando a outra na amargura - bem do jeito que você adora. Irei pôr a mesa e fazer aquele pão com queijo frio que acho absolutamente intragável... E permanecerei ali com meus cabelos num emaranhado de fronha, enrolada num casaquinho e sentada na cadeira de frente pra porta. Só porque você gosta.

E outro dia começa.

Teu VazioOnde histórias criam vida. Descubra agora