"O atrativo da desobediência é o amor à liberdade. A liberdade! Eis aqui o poder que explica o mal e o torna necessário." – Eliphas Levi
Recebi as minhas cartas com um estranho entusiasmo, um misto, na verdade, de medo e ansiedade. Era uma partida diferente de qualquer outra que já havia participado e a recompensa prometida era alta demais embora eu mesmo não soubesse dizer qual era. O suor cobria meu rosto, em decorrência daquele dia modorrento. Meu copo de cerveja brilhava, as partículas de água condensando-se em seu exterior. Tinha a cor do ouro encimada por um manto de espuma que era tão clara quanto a mais pura nevasca.
Puxei as cartas para mim uma a uma, tomando o cuidado de revelá-las apenas aos meus olhos. Cada uma delas continha um segredo, uma verdade que deveria permanecer oculta como os livros de Aristóteles no medievo.
O jogo era simples. Valia-se da hierarquia das cartas, as mais altas ganhavam das mais baixas. O baralho começava nos 4 indo aos 7, passava pelas figuras (dama, valete e rei) e seguia dos Ases aos 3. Além destas, havia as quatro manilhas, uma para cada naipe do baralho, e eram decididas no começo de uma rodada. Virando-se uma carta, as manilhas seriam as de numeração subsequente e seriam as mais valiosas. Tal versão do carteado era chamada de ponto acima em oposição à versão da manilha velha, em que se jogava com menos cartas e as manilhas eram fixas: O Sete Ouros, o Às de Espada, o Sete Copas e o Quatro de Paus, a carta mais alta. O Zap. A grandeza dos naipes era a mesma da versão antiga e remontava, provavelmente, ao Tarot de Marselha. Cada rodada consistia em três turnos, nos quais cada jogador descia uma carta. A maior ganhava o turno. Cada rodada valia um ponto, mas era possível fazer (ou chamar o envido?) o envido, uma "aposta", e aumentar este valor. Caso o adversário não aceitasse a aposta, recolhia suas cartas e a outra dupla ganhava a rodada.
Tal aposta dava nome ao jogo: truco.
Eu não sabia nada da versão original do jogo. Apenas que havia mais manilhas. Uma porção delas. A brasileira era simplificada, muito bem adaptada à nossa cultura espreguiçada e carente de memória.
A primeira carta que eu vi era um seis de paus, valor dos mais baixos. Não seria tão ruim, pensei comigo, dependendo da carta que determinasse as manilhas. No início de cada rodada, tirava-se uma carta. Havia outras regras, é claro, a maioria esquecida em meio às bebidas e à diversão.
Concentrei-me novamente nas cartas, a segunda que virei era outro seis, assim como a terceira na sequência. Um mau presságio. Meu coração veio à boca, aguardando a carta que decidiria o destino da minha mão: um valete.
Os reis eram as manilhas.
Não houve salvação para mim. O destino, naquele dia derradeiro, havia me mandado as piores cartas para selar aquele jogo. Temeroso e inconformado, busquei consolo em meu parceiro.
Era o Diabo, percebi com espanto e...bem, ele é tão feio quanto pintam por aí. Seu cabelo comprido, branco e encardido, descia pelas suas costas. O topo de sua cabeça era calvo e dali apontavam dois pares de chifres distorcidos e assimétricos. Possuía seis olhos, dois humanoides e os outros felinos, dispostos em duplas na sua bochecha. Vestia uma camiseta preta com o nome de uma banda grafada- Passion Pit para minha decepção- e uma bermuda creme revelava suas pernas muito peludas, que terminavam em cascos fendidos. Tinha brincos, vários, nas orelhas e nos chifres, uma barbicha rala e amarelada pendia de seu queixo e uma tatuagem enfeitava seu braço: uma caveira com uma serpente atravessando as órbitas oculares sobre as palavras Hell Yeah! Ele parecia pequeno e atarracado. Talvez o fosse para criaturas criadas no mesmo padrão que ele.
Para mim, um mero mortal, ele parecia um gigante.
Foi então que eu observei meus adversários: uma figura andrógina, vestida em um terno elegante e muito bem ajustado ao seu corpo. Usava luvas e, além do rosto, nenhuma nesga de pele era visível em seu corpo. Seu cabelo era muito curto e bem penteado. Seus lábios eram pequenos e delicados, assim como suas orelhas. Seu nariz apontava para cima, o que lhe dava um ar arrogante. Não usava brincos ou quaisquer adornos. Aidos era seu nome e era a criadora do pudor.