Capítulo dos olhares

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    Não havia melhor hora do dia, querido, do que as manhãs passeadas em contorno da praça do marco zero, próxima à rua onde trabalhava, cujo nome não importa à história, mas sim a alcunha por que era conhecida: a Rua dos Médicos.

   Logo ao chegar às proximidades de meu consultório de oftalmologia, ainda sentia úmidos os lábios beijados por Terência, aquela mulher com quem me casara havia anos, mas não tantos. Entrava à sala principal, descortinava as janelas das persianas no intuito de dissolver a penumbra que causavam ao ambiente, para a manhã entrar e desenhar os traços daquele aposento que tão orgulhoso se iluminava, para mim e para os vindouros pacientes. Nas janelas eu sempre parava alguns instantes, vendo como, em poucos minutos, todos os dias, as ruas, os armazéns, os consultórios vizinhos e os barcos no porto se carregavam e descarregavam de pessoas. E de mulheres.

   Ah! As mulheres deste bairro. Eu deitava a bolsa em minha sala aos fundos e seguia ligeiro percorrer os quarteirões até a padaria do outro lado da avenida onde tomaria o café diário antes de começar as consultas e exames. Mas como este café difere em meu paladar, somente por mérito do delicioso trajeto em sua direção. Pois, veja, eu observava a tudo e a todos neste percurso, e com especial atenção as mulheres que me cruzavam o caminho. Não sei se pela minha face impecavelmente imberbe, devido ao trato matinal apurado pelos anos, ou se pelo andar sério com que seguia até a padaria, ou mesmo pela reputação de competente físico dos olhos, decorrência dos meus anos de formação, mas em certo momento de minha carreira naquele bairro eu me senti alvo dos mais diversos e enigmáticos relances. E eu os seguia até onde a periferia dos olhos poderia permitir. Esta manhã, por exemplo, me deparei com soslaios ridentes, alguns tímidos, inseguros, olhares rápidos, furtivos, outros sensuais, matreiros, loiros, ruivos, morenos, e até charmosos não-olhares. Mas aquele mosaico oblíquo de pupilas fazia meu peito e enchia todos os meus dias com particular felicidade. Juvenal, dono da padaria, companheiro de longa data e já sapiente das peculiaridades deste que vos fala, prepara na garganta seu habitual e sonoro bom dia com o qual me brinda a presença. Tratei seu filho há tempos, de uma deformidade de nascença que quase lhe roubava a luz dos olhos, e por isso ele me será eternamente grato. Quando o vejo ao longe, sei que aquela xícara em suas mãos era minha, insuspeitavelmente.

   A volta ao consultório, como vês, era um percurso igualmente satisfatório. Eram tantas as combinações de formatos e cores que nunca uma manhã se fazia igual à anterior. E não pense que, nesse meu périplo matinal, dava de encontro com semblantes distintos. Poderia me dar a liberdade de elucubrar que os olhos de uma mulher, tal como raios e ondas cortam e arrebentam em campos e costas, raramente se assemelham uns aos outros numa vida. Mas uma coisa era certa: estes se dirigiam a minha pessoa.

   Já meus dedos não contam os anos em que estou em meu ponto na Rua dos Médicos, e, como os anos vencem os olhos distraídos pelo cansaço e indiferença, conheci os vizinhos dos arredores no mesmo nível com que me fiz conhecer. Participo das conversas com meus compadres de profissão e comungo das fofocas de esquina de minhas secretárias, sempre colhendo, tal qual rede de caçar borboletas, e com sutil discrição, as vistas a mim presenteadas. E por dar muita razão aos meus olhos, meus tímpanos emudeceram a uma notícia aparentemente sem muita importância. Aparentemente.

   Deu que, num certo ano incerto à memória, notei que minha sombra, por detrás das costas, já não me acompanhava sozinha, e me assaltou a insegurança dos que são seguidos por estranhos. Quando dei de olhos à minha esquerda, vi que um homem de bem cortada vestimenta me seguia a passos atrasados, com a mesma sincronia e velocidade. E me pintava aos olhos que seu rosto se desviara do meu quando o discerni. Duvidei da alquebrada armação dos meus óculos, mas os aprumei em meu rosto e a mesma cena prosseguia. Seguia-me com os passos de antes, mas com as pupilas firmes ao caminho a sua frente. No entanto, sua respiração o traía. Ofegante, não estaria acostumado a andar com a celeridade que era para mim costumeira, e por conta do esforço, ele expirava uma infeliz insegurança. Podiam ser meus olhos, mas jurarei por aqui que ele estava a me seguir.

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⏰ Última atualização: Jul 14, 2013 ⏰

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