Prédio cinza

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Eu acordava. Levantava, me arrumava. Saia de casa, e ia até um grande prédio cinzento, no centro da cidade. Entrava. Ninguém me olhava. Ninguém sorria muito. Ninguém tinha conversas que não envolvessem relatórios ou porcentagens. Eu ia para o pequeno cubículo que chamava de escritório. E digitava. Fazia cópias e contas, escrevia e fazia relatórios sobre algum lucro de um capital invisível. Voltava para casa. Guardava o terno. Me deitava.

E então, no outro dia, tudo recomeçava. Terno, prédio cinzento, centro da cidade, poucos sorrisos, poucas conversas, cubículo, relatório, casa, cama. Raramente, eu conseguia fazer com que isso mudasse. Passava a noite inteira vendo algum programa na televisão. Outras noites eu nem dormia. De qualquer forma, sintetizando, meus dias eram assim.

Um dia, eu acordei. Me levantei e me arrumei. Ia sair de casa, quando o telefone tocou. Me sentei atônito com a notícia do outro lado da linha. Era uma voz monótona, que falava despreocupadamente sobre uma queda de ações e sobre os cortes de funcionários. Naquele dia, eu não fui até o prédio cinzento.

Eu não tinha muito além de meu terno, meu trabalho e meu pequeno apartamento. Tinha meus cabelos grisalhos e uma barba acinzentada por fazer. Tinha um corpo alto, outrora bem torneado. Tinha também meus quarenta e poucos anos, acompanhados de alguns sonhos esquecidos. Tentei lembrá-los, olhando no espelho do banheiro. Tentei pensar no que faria agora, sem aquele prédio. Tinha a vaga memória de um adolescente que gostava de quadrinhos e de desenhar. Que queria fazer algo que envolvesse artes. Ele não fez.

Uma época atrás, um menininho queria ser astronauta. Perguntei ao meu espelho se aquele garoto estaria decepcionado comigo. Provavelmente sim, porque eu estava. Não me entenda mal, eu odiava aquele lugar. Odiava as pessoas das quais mal conhecia os olhos. Odiava o trabalho que eu mal sabia para que servia. Talvez para me manter ocupado. Me manter continuando, um dia monótono de cada vez.

Pela primeira vez, esse não era um dia monótono. E eu não fazia ideia do que fazer nele. A primeira coisa que meio a cabeça, porém, foi procurar outro prédio no qual eu pudesse me acorrentar. Eu estava totalmente perdido. Tentei não surtar. Me odiava por isso. Por ter uma vida completamente vazia. Por não lembrar direito do que havia antes de entrar naquele edifício. Antes de sucumbir a ideia de que precisava trabalhar, e ter uma televisão enorme, e trabalhar mais, e ter um sofá, e poltrona combinando, e um tapete tribal ridículo.

Pensei em me matar. Eu não tinha vida antes disso, não seria nenhuma mudança radical. Cogitei, logo depois, em existir. Em ir um pouco mais do que aquela caixa que eu chamava de apartamento permitia. Um pouco mais do que chamava de vida. Era algo que eu deveria ter feito desde o começo. Antes de perder meu pequeno cubículo, meu computador e meus relatórios.

Eu não sabia como começar. Decidi sair de casa. Além do prédio e do meu apartamento. Decidi tirar o terno. Desci as escadas, fui até uma cafeteria. Tinha alguns jovens sorridentes nas mesas. Uma família no fundo, com tortas e pudins. Uma música calma verberava pelo local. Foi assim que voltei a minha época de artista.

Ele estava alto e corado. Atrás do balcão, com fones de ouvidos jogados no pescoço e um rabo de cavalo que dava continuidade a uma longa barba castanha, estava meu melhor amigo. Eu tinha esquecido disso. Tinha esquecido das tardes coloridas de aquarela em seu apartamento. Tinha esquecido das notas de violão que havia tentado me ensinar, e das partituras que havia xerocado para que eu aprendesse em casa. Eu nunca aprendi. Ele nunca ligou e cantava pra mim mesmo assim.

Gostava de cantar e tocar para mim, enquanto eu fazia algum rabisco de seu rosto ou de algum personagem de um filme. Isso parecia tão vago que eu não sei se tinha mesmo acontecido. Me perguntava o que aconteceu. Como passei de tardes rindo de empresários e capitalistas ferrenhos para me tornar um? Eu o chamei, gaguejando. Ele parecia surpreso. Mas feliz. Conversamos. Rimos. Fazia música, agora, e trabalhava na cafeteria do meu bairro para pagar as contas. Me perguntou sobre minhas artes.

Pensei nos cálculos. Nas contas que eu fazia para poder pagar as minhas. Pensei nos inúmeros papéis de relatórios. Suspirei. Contei como havia desistido dos meus papéis de rabiscos, desenhos e pinturas. Foi quando ele falou que tinha uma vaga na cafeteria. Como eu deveria tentar, pela primeira vez na vida me arriscar. Como nunca havia arriscado ser astronauta. Como nunca havia arriscado aprender a dedilhar um violão. Como nunca segui meu sonho de ter um atelier e de publicar as poesias do meu caderninho.

Assim, eu acordava. Levantava, e colocava um uniforme com o leve odor de capuccinos e canela. Descia as escadas, atravessava a rua. Servia, sorridente, cafés e bolinhos. A tarde, eu ia para a faculdade. Aprendia sobre a história da arte e voltava a aprimorar o meu traço. Voltava para casa, aliviado. Não para meu apartamento. Não para minhas quatro pequenas paredes sufocantes. Hoje, eu moro com ele. Ele ainda toca violão. Eu voltei a rabiscar. A noite, jantávamos, saíamos, ríamos.

E então, no outro dia, tudo recomeçava. O cheirinho forte de café. Sorrisos, cafés, bolinhos. Magníficas aulas de arte. Música e aquarela. Risos. E uma tristeza que eu havia esquecido dentro de um terno, de um cubículo e de um prédio cinza. 




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⏰ Last updated: Jan 16, 2016 ⏰

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