A beira do abismo

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Acordo as seis da manhã. O sol frio bate em meus olhos e eles demoram a se abrir. Quando se abrem,dou de cara com um rato. O bichinho me olha,quase encostando os bigodes em mim. Não grito. Já estou acostumado com isso. Apenas olho e lhe dou um sorriso amigável. Ele murmura,em resposta. Debaixo do travesseiro,tiro a lata de veneno aerosol. Retiro a tampa e espirro forte entre os olhos do bicho. Ele chia alto e começa a se afastar. Coloco de volta a lata sob o travesseiro. Ao longe,vejo o ratinho cambalear. Ele já parece bem tonto com o efeito do veneno. Começa a se contorcer e,aos poucos,vai caindo. Quando vou ver,ele está deitado,dando os últimos suspiros lentos. Ouço um grunhido final e seu peito cessa,como o último sinal de vida. Não me arrependo. Vou morrer hoje mesmo. Não ligo pra nada.

Me visto normalmente,tirando peças da pilha de roupas que fica no canto,com um nauseante cheiro se mofo. Coloco uma camisa branca e uma calça jeans Calço o tênis e desso,trancando a porta atrás de mim.
Do topo da escada,ouço meu tio roncando lá embaixo. Desso a escada devagar,sendo cauteloso com as passadas. Passo pela sela e vejo meu tio. Só mais um velho bêbado como qualquer outro. Ele está jogado sobre o sofá,a barriga protuberante pulando pela camisa,e uma não pendendo para o lado,onde uma garrafa de cerveja já quente aguarda para ser bebida. Como sempre,acontece a mesma coisa. Ele passa a noite bebendo,de cara pra televisão e,quando chega na última garrafa,ele caiu no sono. Já me acostumei a ver isso. Pena que não verei mais. Pena não,finalmente.
Vou até a cozinha pra pegar a chave do velho Ford. Ela fica pendurada no porta chaves com formato de casa. Pego a chave e vou até a geladeira. Tomo um copo de leite e como um sanduíche de manteiga de amendoim. Minha última refeição. Até os suicidas tem que ter uma última refeição.
Na geladeira,vejo vários bilhetes colados por imãs. A maioria são de contas atrasadas e números de deliverys. Coisas de um velho alcoolàtra. Olho para os bilhetes e lembro de uma coisa:o bilhete de adeus. Todo suicida tem um. Grande parte escrevem para pessoas que se importem que eles. No meu caso,não tenho ninguém que se importe comigo. Mesmo assim,não quero que o velho tenha um infarto por perder o carro,embora seria maravilhoso que isso acontecesse.
Tiro uma folha do bloco de notas na parede e pego uma caneta. Apoio a folha na mesa enquanto mordo a tampa da caneta,pensando no que escrever. Só sei que deve ser algo curto e sútil. Penso no mais sútil possível e escrevo.
"Estou indo me matar. Lá no penhasco Red Hood. Estou levando seu carro .Só quero que saiba que você é um velho babaca que devia tomar uma surra,e que o mundo seria bem melhor sem você. Além disso,não preciso dizer mais nada. Você nunca se importou mesmo".

Pego o papel e prendo na geladeira com um pequeno imã vermelho. As letras são bem vivas então,duvido que ele não perceba. Deixo a caneta em cima da mesa e saio.
O primeiro sinal que tenho de que hoje é o dia certo para um suicídio é o clima. Quando abro a porta,o vento frio acerta meu rosto com força. Parece que acabei de levar um murro. Caminho em direção ao carro,as chaves balançando em minha mão. Entro e tenho aquela sensação reconfortante de quando se sai do frio. Ligo o aquecedor e respiro o ar quente. Ele me revigora. Olho para casa e dou um sorrisinho. " Nunca mais vou ver essa merda de casa"penso"Que bom".
Coloco o carro em ponto morto e saio pela garagem. Manobro e sigo pela Rodeo West. Pego a direita na Rogers Street e sigo pela avenida principal. No fim da cidade,pego a rodovia que leva até o penhasco Red Hood.
Enquanto dirijo,vejo diversos carros passando,indo em direção á cidade."Pessoas com vidas que valem a pena viver" penso "eles nem imaginam que alguém está prestes a se matar".Rio disso.
Ao longe,vejo o penhasco Red Hood. Desde que conheço,ele é considerado o monumento mais sombrio da região. Quem pudera também. A frente,uma grande rocha pontuda de cara para um abismo coberto pela neblina,onde só Deus sabe onde é o fundo. Sempre quis saber o que havia no fundo. Por isso,quando a idéia de suicídio passou pela minha cabeça,logo imaginei o penhasco,e como seria mergulhar até o fundo desse abismo. Bem,aqui estou.
Estaciono o carro na beira da estrada. Uma van passa voando por mim. Fico um tempo vigiando até que a van desapareça. Quando ela se perde na neblina,olho para os dois lados de novo. Nenhum carro a vista. Ótimo. Fecho a porta carro e deixo a chave na ignição. Caminho devagar pelo chão de pedra. Ouço o cascalho estalando sob meus pés. Enfim chego á beira do penhasco. A neblina fica a poucos centímetros dos meus olhos e eu sinto o frio me rodear. Olho pra baixo e fito o nada. Apenas ouço o barulho das ondas se batendo. Olho para o céu. Uma nuvem escura o cobre. Sinto as primeiras gotas de chuva cortando minha face. Coloco a lingua pra fora e sinto a água salgada.
Então esse é o meu fim. Não sei por que chamar de fim se não teve começo. Não me arrependo nem um pouco disso. Já não tenho mais motivo para viver. Então tudo acaba aqui mesmo. Tudo que eu mais amo está morto. Nada sobrou. Então,devo morrer por isso.
Olho para o horizonte e vejo o mar. Ó lindo mar!Pela última vez,dou um sorriso. Dou um sorriso para a última coisa bonita que verei. Então fecho os olhos. O vento sopra em meu rosto e eu começo a me inclinar para frente. Então...
_Acho que você não deveria fazer isso.

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⏰ Última atualização: Jan 24, 2016 ⏰

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