Fragmento 24: Caos

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"Não é que eu tenha medo de morrer. É que eu não quero estar lá na hora que isso acontecer. "

Woody Allen



Julia se encarregou de cavar uma cova no gramado abandonado da Casa do Bandeirante. Encontrou pás e enxadas junto de outros equipamentos de jardinagem no depósito do museu. Luciano saiu a pé rumo a uma torre de energia ali perto para olhar as redondezas, munido de seu binóculo. Julia chorava enquanto fazia o trabalho pesado de escavar a terra. O corpo de Sâmela estava fechado no saco de dormir e antes de levá-la para o lado de fora, Luciano se certificou de tirar seus equipamentos. Foi com uma frieza estranha que ele retirou tudo do corpo e amontoou num canto. Sequer fechou os olhos da colega que ficaram entreabertos enquanto ela convulsionava até que morreu com um tiro na cabeça. Julia só pôde observar seus movimentos, sem conseguir achar alguma palavra para dizer a ele. Mas não via muito pesar em suas ações. Ou ele estava conformado em ver colegas morrerem, ou a morte de Sâm não significou muito. Tendia a acreditar na primeira opção, já que Germano o colocara atrás das grades por querer ir até ela na Barra Funda. Ao menos, fora isso que ele dissera.

Julia cavou até a profundidade que achou adequada, tendo uma pilha de terra úmida à sua direita e o corpo de Sâm no saco de dormir. Secou o suor que escorria da testa enquanto parava para respirar naquela manhã fria. Olhou além, na direção do rio, percebendo que o rio Pinheiros não exalava seu habitual cheiro de ovo podre. Nunca pensou que veria a cidade que nunca parava tão morta daquele jeito. Morta mesmo, com mortos-vivos perambulando pelas ruas.

Largando a pá no chão, Julia se abaixo ao lado do corpo e lamentou mais uma vez a morte de Sâm. Ela se sentia segura com ela por perto, mas agora parecia que tinha perdido um apoio importante. Algo a respeito de Luciano a deixava apreensiva e não sabia exatamente como se comportar com relação à isso. Segurando pela alça que servia para segurar o saco de dormir no lugar quando estivesse enrolado, ela arrastou o corpo da policial para o fundo da cova mal cavada e o ajeitou com cuidado para que coubesse. Julia ainda preparou um pequeno buquê de azaleias que cresciam aos montes no terreno e colocou por sobre o peito de Sâm, antes de sair do buraco e começar a enchê-lo de terra. As lágrimas voltaram e molharam seu rosto. Lembrou-se de quando precisou cavar para uma cova para Leonardo e como sofreu com cada momento. Também se pegou num momento funesto: quem cavaria a sua quando chegasse a hora? Ou será que perambularia pelas ruas sem alma, sem vida, sem destino?

Um tremor passava por seu corpo ao pensar nisso. Continuou jogando terra, pá após pá, até que cobriu todo o buraco. Para sinalizar o lugar, colocou três paralelepípedos como se fossem uma pequena pirâmide de degraus e depois sentou-se ao lado da cova.

Luciano correu até a torre de energia ao lado do portão da CPTM da cidade universitária da USP e o escalou rapidamente. Do alto, ele tinha uma boa visão do Butantã e das elevações da avenida Francisco Morato. Com seu binóculo ele conseguiu ver alguns caminhões do Exército que carregavam tambores e tonéis, muito provavelmente suprimentos e combustíveis. Não via zumbis em zonas de sombras, mas via que as tropas tinham começado a limpar prédios, lojas e casas ao redor da cidade-universitária. Onde tivesse um X vermelho, era sinal que a casa estava abandonada, onde havia um X branco, era sinal de que fora revistada e liberada. Podia ver também rolos de fumaça negra subindo aos céus perto da rodovia Raposo Tavares. Talvez uma operação de limpeza, queimando destroços, carcaças de carros e corpos, por que não? A avenida Elizeu de Almeida, do seu ponto de vista, parecia barricada por sacos de areia e arame farpado, mas podia ver a movimentação de carros do Exército por ali e algumas viaturas da polícia militar. Mais a leste, perto da ponte Eusébio Matoso, ele via que estavam reconstruindo a antiga ponte, mas com apenas uma pista, um funil de segurança para a parte mais segura da cidade naquele momento. Eram engenheiros do Exército pelo que podia ver.

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