Música de Arpão: Parte I

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Quase uma hora se passou e Moira ainda reluta em subir pela última espiral de pedras – muito estreita – que dá acesso ao farol propriamente dito. Ela sente a tentação de voltar e solicitar ajuda do soldado preso. Chega a virar seu corpo na direção oposta até que, como que despertando de um sono, lembra-se do orbe vermelho. Estava tão preocupada com outras coisas que esquecera completamente do artefato. Usa-o imediatamente e, quase como um bêbado que toma um desejado gole após muito tempo de abstinência, ela se acalma e sua mente clareia novamente. Isso também a deixa preocupada. Desconhece os efeitos que pode sofrer a longo prazo. Que tipo de dependência pode lhe causar? Mas decide que se ocupará com isso depois. Por hora, o artefato é toda a ajuda que terá. Ainda há tiros no litoral. Seu coração acelera conforme conforme chega perto da porta do alçapão. A conversa vinda de cima parece estar longe da porta. Moira aproxima-se o máximo que pode e encolhe-se tudo o que consegue para poder erguer o alçapão com as costas o mais rápido possível. Certifica-se de que está destrancado dando uma leve erguida e abaixando lentamente depois. A conversa trivial não mudou de rumo, indicando que ninguém notou sua movimentação. A solitária invasora certifica-se de que suas pistolas estão devidamente armadas, faz uma breve prece ao Ancião das Eras e ergue seu corpo com toda a força possível. O barulho alertou a todos os ocupantes do lugar, que são em número bem maior do que aquele soldado dissera. Moira conta aproximadamente oito militares olhando-a. Não se sabe de quem é o maior espanto: se da jovem olhando para todos os lados sem saber em quem atirar primeiro ou dos soldados – de mãos para cima – que não esperavam alguém invadindo um local tão bem protegido.

– Onde está o capitão? – um deles pergunta, e nesse momento Moira entende com quem estava falando lá embaixo. Lembrou-se de que é costume militares nos faróis de vigia não usarem suas insígnias por segurança.

Com seus sentidos todos ampliados graças ao orbe vermelho, ela ouve quatro armas sendo engatilhadas discretamente. Consegue esquivar-se dos tiros a tempo de salvar sua vida, mas não sem evitar sua queda escada abaixo. Moira consegue parar após rolar alguns degraus. Com as pernas apontando para cima e erguendo sua cabeça, ela consegue ver alguém se aproximar da abertura do alçapão carregando um mosquete. Sem hesitar, a garota atira antes e faz com que o soldado tombe em sua direção. Passos apressados, todos na mesma direção, indicam que estão indo até o arsenal. A pequena invasora levanta sentindo o pé direito doer muito. Cada degrau é como um espinho entrando pelos lados. Ela apaga o orbe para ver se é efeito da ampliação dos sentidos, mas a dor se torna muito maior. Acendendo novamente a esfera, a sensação de dor alivia e Moira consegue correr quando ouve tiros sendo dados em sua direção. Os passos chegam mais próximos e a espiral de pedras não termina. Ela puxa uma flecha e arma seu arco. Dá uma pequena parada e vira-se para trás, aguardando o primeiro a aparecer. Não demora até que sua encontre o peito de um soldado. Outro chega e tenta um tiro de sorte. A moça, porém, já disparara outra flecha antes do homem apertar seu gatilho. Faltam cinco, mas os outros são mais cautelosos. Ela ouve o acender de um pavio e decide que é hora de ignorar de vez a dor e correr muito. A explosão dá uma certa dianteira para a fugitiva. Vantagem que ela usa como pode, já que o arsenal de seus inimigos não é composto apenas de mosquetes e granadas. Há rifles de repetição. Dois, pelas contas que Moira faz da cadência dos tiros. Isso tira completamente o controle que ela achava que tinha da situação. A dor impede que Moira corra mais rápido. Felizmente ela consegue dobrar o corredor antes de ser alvejada. Olhando o longo caminho – iluminado por tochas a óleo já quase sem combustível –, ela vê que não conseguirá chegar até a escada para o andar debaixo. Seu pé não lhe permitirá.

~~ * ~~

Os soldados avançam pelo corredor que Moira deixara para trás. Seus passos são obstinados e, infelizmente, não são os únicos que ela ouve. Entrando pela janela situada um pouco mais adiante, o som do marchar de uma grande tropa faz a sobrinha do conde tremer. Ela precisa de tempo para pensar, mas os passos dos homens que estão no corredor de trás ganham velocidade na mesma medida em que os da tropa no chão aumentam. Ela prepara uma flecha, volta-se e atira contra um dos remanescentes do farol. O rifleiro mal teve tempo de reagir. Os outros pararam e decidiram manter posições. Olhando para o lampião mais próximo, já quase sem óleo, ela sabe que seu tempo é pouco maior do que essa chama vai durar. Moira pega as esferas de chumbo que lhe restaram. Um punhado que lhe enche a mão, mas que não terá tempo de usar se quiser recarregar suas armas. Ela enfia todas na pequena bolsa onde carrega a pólvora. O pavio do lampião recém absorvera o resto do combustível. Ela o tira com cuidado para não apagar e cuidadosamente coloca a chama muito próxima da abertura da bolsa. Os homens recomeçam a caminhar cautelosamente. Sem olhar, Moira arremessa a rudimentar bomba relógio pela esquina e tapa os ouvidos. O grito de surpresa dos homens é interrompido quando a chama quase morta toca o conteúdo da bolsa. Sem perder mais tempo, a garota pega três flechas e recomeça o caminho de volta até o farol com uma delas já preparada para disparo. O resultado de sua estratégia, no entanto, foi mais bem sucedido do que suas expectativas. Os corpos ensanguentados lhe dizem isso. Infelizmente, a explosão também inutilizou os rifles. Nada que ela mesma não soubesse consertar. Se tivesse tempo. O barulho de algo batendo na torre tira a atenção de Moira dos rifles e a leva a olhar pela janela. O som que ouviu fora a porta de acesso da torre sendo escancarada. Mas não foi arrombada, foi aberta por dentro. A sombra projetada no chão da saída causa furor na sobrinha do conde. O capitão – passando-se por um guarda normal, graças ao costume de não se usar insígnias de patente nas torres de vigia – a enganara completamente. O arsenal e a estreita porta de entrada do farol são suas únicas chances de sobreviver. Sem perder tempo, Moira refaz do jeito que pode todo o caminho de volta até o topo da torre de vigia. Abrindo a porta do alçapão, sem tanto temor dessa vez, ela tenta soar o alarme, que não emite barulho algum. Ela tenta então acender o farol, mas não há pavio, e onde deveria estar um estoque deles não havia mais nada. Não há chave para o alçapão, portanto, antes de seguir para o arsenal, ela derruba duas escrivaninhas próximas, dificultando a inevitável invasão que logo chegará ali. Arrebentando o cadeado do arsenal, Moira encontra seis mosquetes e duas pistolas de pederneira. Nenhum rifle. Então algo chama sua atenção. Algo que jamais poderia ver se não estivesse ainda com orbe vermelho lhe aliviando a dor. Um ponto do mar noturno parece mover-se diferente. Ao chegar perto da janela e apertar um pouco os olhos, ela sente como se houvesse uma luneta em sua frente e consegue ver nitidamente um navio de velas e madeira negras aproximar-se rapidamente da costa. Na proa, vigilante, há um wulup de grande porte segurando ao seu lado uma espada que bate nos ombros. Olhando para o casco, é possível enxergar o nome da embarcação: "Fantomas". Moira sorri e seus ombros relaxam. Áaron e Mairéad cumpriram sua missão. Agora, a filha de Anna luta apenas pela própria sobrevivência, e isso a faz sentir-se mais leve. Ela volta ao arsenal e prepara todas as armas. Com tudo pronto, apoia-se com as duas mãos no farol desligado e respira fundo. Prende a respiração, cerra os olhos e vira-se, sacando rapidamente seu florete e golpeando o ar. O movimento da porta do alçapão então a coloca novamente em alerta. Moira recolhe sua espada e aguarda o primeiro hostil aparecer.

~~ * ~~

Usando o farol como barricada, a jovem nobre das Ilhas Frias observa uma pequena fresta aparecer com bastante esforço. Como é muito estreito para uma bala pouco precisa de um mosquete, ela atira uma flecha. O grito do homem rolando indica que ela o acertou em cheio. Indica também que a tropa perdeu o elemento surpresa. Isso os faz começarem a transformar a frágil barricada em uma peneira. Quando os tiros param, o barulho que se segue é o dos mais fortes soldados abrindo a porta com toda a força e arremessando as escrivaninhas arrebentadas para a parede. A donzela usa três mosquetes. Mais três homens mortos, mas pela abertura pulam dois corajosos e ágeis soldados. O menos rápido leva um tiro na barriga e cai pelo parapeito da torre. O outro consegue atirar nela, mas o pedestal do farol é uma eficiente barricada. Moira é forçada na direção do alçapão pela espada do homem e são necessários dois tiros de pistola para livrar-se dele. Frente a frente com um atirador que a aguardava na escada, só lhe resta arremessar uma das pistolas na cabeça dele, o que o faz errar o tiro e recolher-se. Antes que outro tome o lugar, ela consegue fechar o alçapão e jogar as duas escrivaninhas de volta – e ainda colocar ali mais uma que estava em outro canto.

O Alerta do PeregrinoOnde histórias criam vida. Descubra agora