A utopia de uma boa distopia

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Após o sucesso nos cinemas da série O Senhor dos Anéis, viu-se no Brasil um tsunami de variações mais ou menos bem sucedidas do tema da fantasia medieval e esse interesse foi renovado pelo seriado Guerra dos Tronos e por O Hobbit. Entrevista com o Vampiro e Crepúsculo alimentaram enxurradas de contos ou romances sobre vampiros e a série The Walking Dead, muitos enredos sobre zumbis. Não tenho nada pessoal contra cavaleiros, vampiros e zumbis, mas suas histórias se tornaram estereotipadas e previsíveis demais e torci para que a boa aceitação de Jogos Vorazes trouxesse uma onda de interesse nacional por distopias, que pressupõem mais reflexão e inventividade. Por enquanto, estou desapontado.

Há, pelo menos, uma grande distopia brasileira, que é "Não Verás País Nenhum", de Ignácio de Loyola Brandão, mas é um livro de 1981. Dos anos 1990 para cá houve um bocado de contos de ficção científica pessimista, inclusive, por exemplo, a maior parte da coletânea de ficção feminista Universo Desconstruído, mas projetar no futuro a violência, a pobreza, os preconceitos, a desigualdade ou a corrupção do presente não basta para uma boa distopia.

A tentativa mais explícita de emular no Brasil as distopias na literatura juvenil anglo-saxônica talvez seja a trilogia Anômalos de Bárbara Morais ("A Ilha dos Dissidentes", "A Ameaça Invisível" e "A Retomada da União") e a influência do trabalho de Suzanne Collins é visível na obra e na sua promoção editorial, mas independentemente dos méritos da história, é discutível se pertence ao gênero. Pela ênfase na discriminação de jovens mutantes com poderes especiais convocados para atuar como uma força militar especial, está mais próxima dos X-Men. Um governo ou sociedade cuja característica mais marcante é oprimir super-heróis não soa como uma advertência séria sobre um futuro possível. Assim como a história em quadrinhos, pode ser lida como metáfora sobre problemas do presente (discriminação e exploração dos "diferentes", digamos), mas não como advertência sobre os rumos do futuro.

Não basta um governo opressor, uma ecologia e economia desastrosas ou um conflito social. A maioria dos cenários de fantasia e ficção científica pressupõe injustiças ou dificuldades a serem enfrentadas pelos protagonistas, até porque é muito difícil escrever histórias empolgantes sobre mundos perfeitos, mas nem por isso são distopias. Para uma obra pertencer a esse gênero de maneira convincente, deve especular sobre as consequências negativas do aprofundamento de tendências e possibilidades concretas do presente, de modo que o cenário pareça plausível e preocupante, mas não um terror inescapável. Deve mostrar os processos de maneira que possam ser compreendidos e enfrentados.

Como Naomi Klein, uma ativista contra o poder das corporações e a destruição do ambiente, sobre a tendência crescente da ficção científica a descrever futuros de miséria, brutalidade policial e colapso ecológico:

"Esses filmes nos dizem que estamos dando por certo um futuro de catástrofe ambiental. A parte mais difícil de meu trabalho é convencer as pessoas de que somos capazes de fazer outra coisa. Esse boom na literatura é excitante, mas acho que pode ser perigoso se não for visto como uma advertência, mas como algo inevitável".

Idealmente, uma boa distopia não apenas assusta com um futuro sombrio, mas faz pensar criticamente em como evitá-lo ou transformá-lo. É o contrário da autoajuda baseada no "pensamento positivo". Esta conforta, ensina a se despreocupar, aceitar a "realidade" e buscar a felicidade pessoal em uma narrativa individual positiva. A distopia inquieta, que chama a atenção para problemas com os quais o leitor talvez nunca tenha se preocupado, recusa-se a se conformar.

Pode haver ou não uma rebelião, que pode ser ou não bem sucedida. A tentativa de combater a ordem pode se mostrar fútil para ressaltar a importância de evitar a concretização do cenário enquanto é possível, ou pode dar ênfase à esperança de transformação mesmo no pior dos casos. Ambos os caminhos são praticáveis, desde que se saiba aonde se quer chegar.

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