- O que que houve, senhor? - Disse o homem surpreso.
- Posso entrar?
- Sim, claro. - Abriu a porta de sua casa, feita de tijolos e sem reboco, em uma favela.
O Rei do Crime, como foi apelidado pelos jornais, sentou-se à mesa simples de madeira encostada na parede, enquanto esperava o homem colocar água para esquentar em uma chaleira amassada, na cozinha pequena.
- Zé, a Julia e as crianças estão em casa?
- Sim, senhor. Estão dormindo.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, senhor. Aconteceu alguma coisa?
- Por favor, pode me chamar de Flávio.
Ambos se olharam por um instante, então Zé desviou o olhar com relutância. O olhar do Rei do Crime era como o de alguém que podia ler a mente das pessoas, e Zé não estava preparado para passar por isso às seis da manhã.
- Sabe... Uh... Se importa se eu fumar aqui?
- Não, senhor.
- Tem um assunto que eu quero tratar com você, mas antes, eu quero te fazer uma pergunta. - Acendeu um cigarro. - Me diga... Vamos supor que um rapaz, podemos chamá-lo de Caio, tem um cachorro. Ele conhece o próprio cão há anos, e sabe bem de seu comportamento agitado. Podemos até acrescentar que este cachorro é um pit bull. Tá certo?
- Sim. - Zé assentiu apreensivo, e levantou para colocar o leite para esquentar.
- Digamos que Caio tenha em casa também um gato, este porém, é recém nascido e passa a maior parte do tempo em uma caixa, porque ainda não está pronto para sobreviver sem a ajuda de seu dono, o Caio. O rapaz sabe que seu cão não pode ficar próximo ao filhotinho de gato, por razões óbvias. Caio saberia com toda a certeza do mundo que seu cão devoraria o gatinho no momento em que tivesse a chance. Ainda assim, por desleixo, certo dia ele sai de casa e deixa seu cão solto, e a caixa com o filhote em seu alcance. Agora me diga, Zé: O que aconteceu com o gato?
- C... Como assim, senhor?
- Vamos lá. É uma pergunta bem simples. E pode me chamar pelo nome, eu não me importo, desde que sejamos íntimos. Somos parte de uma grande família, certo? E como é que uma família deve ser, Zé?
Zé ficou sem palavras. Abaixou a cabeça com os olhos cheios de lágrimas, tentando esconder o medo.
A caneca do leite começou um assobio baixinho.
- Unida. - Disse o homem, ainda de cabeça baixa, com voz muito baixa e trêmula. - A família deve ser unida, Flávio. - Completou ele, e ergueu a cabeça para olhar para o Rei do Crime nos olhos.
Flávio tinha o olhar sereno, porém penetrante, através da fumaça tremeluzente que saía do cigarro que segurava próximo ao próprio rosto. O Rei do Crime tinha barba e cabelos grisalhos, e uma pele enrugada e cansada pela exposição ao sol.
- Então, concluindo a história, Zé. - Soltou lentamente a fumaça pelo canto da boca. - Caio chegou em casa, e seu gatinho estava morto. Agora eu te pergunto, Zé: De quem foi a culpa?
Zé relutou muito em dizer, fingiu distrair-se com o assobiar da caneca de leite, que ficava cada vez mais alta e aguda, porém finalmente disse:
- A culpa foi de Caio.
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O Cão
Mystery / ThrillerO Rei do Crime da cidade sobe a favela à procura de um de seus capangas de maior confiança, que está escondido porque fez besteira. O chefe acaba tendo que procurá-lo na casa de um dos irmãos dele.