Capítulo Cinco

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No caminho de volta pra casa, Cacau passa pelo local do acidente. De início ela não reconhece o lugar, mas meu desconforto entrega o jogo.

Quando ela cruza a mesma faixa de pedestre que tentei atravessar pela manhã, parece que o ar ao meu redor fica mais denso, mais pesado, e o barulho da buzina e o ranger dos pneus no asfalto ouvidos naquela manhã, ressoam na minha cabeça me provocando calafrios. Fecho os meus olhos e prendo a respiração na tentativa de esquecer aquelas imagens.

_Está tudo bem – Cacau falava com uma mão no volante e outra sobre minha perna – Estou aqui. – E depois de um leve aperto na minha coxa, ela volta toda sua concentração para a direção do carro.

Mesmo sem ela perceber, dou um leve sorriso em sua direção e agradeço baixinho por Deus ter colocado ela no meu caminho. Não saberia o que seria de mim hoje sem a amizade dela.

Assim que consigo enxergar a nossa mansão, que se resumia a uma quitinete de quatro cômodos, fico mais revitalizado. Eu sei que não é um apartamento cinco estrelas, mas durante esses quatro anos, o telhado dela vem nos livrando de pegar resfriado debaixo de chuvas.

Quando passo pela entrada, vou correndo para o banheiro. Precisava de um banho urgentemente. Sempre quando saio de algum hospital me sinto mais sujo do que se estivesse brincando em uma poça de lama. E falando nisso, aquele cheiro enjoado de hospital parecia estar impregnado no meu nariz.

Assim que saio do banheiro sinto um cheiro agradável vindo da cozinha, e tenho quase certeza que Cacau mais uma vez utilizou dos seus dotes culinários. Se brincar, eu não sei nem ferver água, o que torna mais um motivo para agradecer pela existência da Cacau.

Vou em direção da cozinha movido pelo cheiro e pela fome que estava sentindo. Aquele "banquete" do hospital não tinha me deixado satisfeito, e quando chego à cozinha, vejo uma lasanha bem cima da mesa. Tentação me definia naquele momento, mas tinha que esperar. Estava bem perceptível que tinha acabado de sair do forno. E eu não queria voltar para o hospital com uma baita indigestão. Foi quando percebi que a Cacau não estava ali. Grito por ela.

_Cacau? Onde é que você tá?

_No quarto. – É tudo que ela diz.

Quando chego próximo ao quarto, percebo que Cacau está usando o computador devido o estalo provocado ao digitar no teclado. Não é necessário chegar muito perto do computador para ver que ela estava digitando um currículo. Bem no topo da página estava escrito, Nicholas Xavier Ribeiro.

_A lasanha estava boa? – Ela pergunta sem nem tirar os olhos da tela do computador.

_Vim chamar você justamente pra respondermos juntos a essa pergunta. – Falo enquanto lia os outros dados do currículo. – Difícil falar sobre outra pessoa?

_Não quando você é amigo dessa pessoa desde criança. – Ela forma um leve sorriso no rosto.

_Não sabia que tinha contratado uma secretária particular. Apesar do acidente, acho que ainda consigo digitar.

Como se estivesse me ignorando, ela ativa a impressora, e diversas folhas com algumas linhas escritas saem aos poucos de dentro dela.

_Deixe de ser mal agradecido. Estou tentando apenas ajudar. Não gosto de ver pessoas que eu amo tristes. Inclusive você, se não for o único, é claro. – Falava enquanto colocava as impressões dentro de uma pasta.

_Acho que houve uma falha no sistema enquanto Deus estava me criando. Tudo tá dando errado pra mim! – Desabafava enquanto atirava o meu corpo bem na cama ao lado. – Às vezes fico me perguntando como tudo seria se meus pais tivessem me aceitado da forma que eu sou. Será que estaria cursando o meu tão sonhado curso de medicina? Será que já teria meu carro próprio? – Me questionava enquanto olhava para o telhado tentando achar uma solução pra essa minha vida.

_Essas perguntas eu não vou saber te responder. Mas sei que nada cairá do céu se você não se movimentar. – Falava Cacau enquanto estendia a pasta de currículos em minha direção. Peguei a pasta sem muita determinação, mas fico mais atento quando vejo um pequeno bilhete escrito em cima de toda aquela papelada. Pego, e depois leio.

A vida é um piano. Teclas brancas representam a felicidade, e as pretas à angústia. Com o passar do tempo você percebe que as teclas pretas também fazem música.

_Não me lembro onde li esse fragmento. Provavelmente em um bom livro. Mas isso não importa. – Cacau falava enquanto sentava bem ao meu lado. – O que importa no momento é você colocar na sua cabeça que reviravoltas virão, mas como também, – ela dá uma leve pausa –, que um dia você vai cuspir na cara de todas elas.

Ambos rimos e caímos juntos na cama. Cacau e suas boas dosagens de realidade. Como não ama-la? Acho que todas as pessoas que vivem nesse mundo deveriam ter um minuto para conhecê-la. Até mesmo aquele líder mal humorado da Coreia do Norte. Quem sabe ela não daria um jeito nele.

_Agora vamos que lasanha fria não cai muito bem. 

E antes de sairmos, fixoaquele bilhete no meu mural, bem ao lado da nossa foto quando crianças.

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