CAPÍTULO ÚNICO, "É porque te quero bem."

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Era dia, porém uma tênue camada de cinza cobria o céu. Havia uma melancolia natural no ar, quase hipnotizante, mesclada a uma quietude tão gritante que chegava a abafar o bater das asas dos pássaros que cruzavam o horizonte. Densa nuvem de neblina preenchia a cidade, deslizando pelos becos escuros e penetrando os lugares onde a luz não chegava, ao cargo que ocultava de vista toda a podridão enraizada nos prédios e casas antigas que compunham o lugar.

Uma figura feminina emergiu da névoa, trajando um vestido branco que alcançava a linha dos seus joelhos, enquanto caminhava pela calçada de uma determinada rua. Seus cabelos eram longos e decaíam nas costas em cachos cheios e loiros como o sol que há muito não aparecia. As sandálias amarronzadas que calçavam seus pés emitiam um ruído surdo ao tocarem o chão que, se fosse observado de perto, era composto de cimento junta a pequenas pedras brilhantes que reluziam em certo ângulo.

"Se essa rua 
Se essa rua fosse minha
Eu mandava
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas
Com pedrinhas de brilhante
Para o meu
Para o meu amor passar"

Seu objetivo era voltar para casa, localizada do outro lado do parque, cujos arredores contornava naquele exato instante, no intuito de ritualizar mais um dia passado banhando-se na água cristalina de sua banheira. Quase podia sentir o cheiro do café que comumente empestava a cozinha, ou tocar a superfície retilínea dos livros empilhados na sala, tamanho era o desejo de deixar as ruas tristes e ver-se cercada por um abismo de si mesma.

Um assovio macio e distante, de súbito, se fez ser ouvido cantarolando uma canção sem letra. Era singelo, de um tom delicado, e parecia dançar nos ouvidos da garota que se movia em silêncio. As notas musicais eram emitidas, uma após a outra, em uma melodia cerebrina que aos poucos iam tomando forma e refletia a sensação de desalento que o próprio lugar já possuía.

Ela aguçou a audição, afim de descobrir a origem da curiosa música, mas não foi capaz de fazê-lo apenas olhando ao seu redor. Não havia ninguém, nem uma alma viva, e mesmo o vento parecia se recusar a percorrer aquela área. O lugarejo estava imerso em uma atmosfera de tristeza delgada que o aprisionava em um tempo de eterna melancolia.

Após alguns segundos, conseguiu identificar a direção de onde o cântico vinha e, embebida em uma sensação túrbida, pôs-se no encalço dela. Permitiu que seus pés, que demonstravam saber o caminho até então desconhecido pela jovem, a guiassem através dos quadrados no chão, dispostos um ao lado do outro afim de formarem uma passarela por onde os pedestres caminhavam, seguindo o som do assovio misterioso.

Alcançou os portões enferrujados do parque — cujo letreiro de metal velho ostentava os dizeres "Bosque da Solidão" em letras garrafais — que parecia ainda mais sombrio que o caminho que levava até ele. Estava abandonado há anos e, por essa razão, a grama havia crescido de forma irregular. As árvores, sem a poda adequada, se fundiam através dos galhos umas das outras, dando um aspecto selvagem ao lugar, enquanto trepadeiras se enroscavam na estrutura da entrada.

Era impossível ver coisa alguma por causa da bruma que tomava conta do parque. Silhuetas quebradas de apetrechos outrora em uso podiam ser notados — uns mais distantes, e, portanto, mais visíveis que outros — aqui e ali. A copa das árvores quase tapavam o céu por completo, enegrecendo o caminho que conduzia ao seu interior e criando dúvida em torno do fato de um dia ter havido vida no local.

"Mya..." 

Escutou o próprio nome em meio a um sussurro funesto. Procurou o arauto, mas não havia ninguém em seu campo de visão. Murmúrios trouxeram-no mais uma vez e a garota se viu cercada por um instinto que estranhamente a compelia a adentrar o sítio. Não sabia explicar; a curiosidade era aterradora, assim como o desejo irracional que a guiava através da escuridão, semelhante a um ímã que a puxava em direção ao pólo místico.

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⏰ Last updated: Jan 30, 2016 ⏰

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Anjo de PedraWhere stories live. Discover now