A grande mudança realmente significativa na minha vida aconteceu quando eu completei dezoito anos — na verdade foram alguns dias antes. Eu já tinha um sonho em mente, terminar meu ensino médio em Santa Catarina e fazer faculdade em outra capital do Brasil. Minha tão sonhada medicina! Desde meu aniversário de dezessete anos eu vinha com essa ideia de fazer medicina, tudo por causa de uma excursão mega interessante que meu colégio fez a um laboratório, para dizer a verdade, eu nem lembro muito como era ou onde era o lugar. Porém algo lá me fascinou tanto que a ideia fixou, e quando isso acontece é bem difícil tirar da minha cabeça.
Meu foco eram as federais de São Paulo e de Minas Gerais. A primeira porque meu ídolo de profissão vivia lá, Henrique Bartolomeu, o mais gato, competente, inteligente e incrivelmente inspirador reumatologista que eu tive o prazer de conhecer em uma das palestras que ele deu na Universidade Federal de Santa Catarina, coincidentemente numa visita que meu colégio fazia ali, fui a primeira a correr para me sentar nas cadeiras da frente. Já a segunda universidade me atraía por causa da sua posição no ranking das melhores universidades do país, segundo o Guia do Estudante, Vestibulando Ansioso e diversos outros sites, mas, também, principalmente, por onde ela se residia. Belo Horizonte parecia como um imã, foi até mesmo cogitada por meus pais quando os planos de mudança para o Brasil começaram, e depois de ter conhecido Sabrina, moradora de lá, me apaixonei ainda mais pela capital mineira.
A decisão poderia ser difícil, contudo, não seria tão difícil quanto convencer meus pais a me deixarem sair de casa, sair do estado.
Eu tinha plena certeza que meus pais não aceitariam isso. Eu sou a primogênita deles e eles eram super protetores, nos meses anteriores tentei puxar esse assunto várias vezes, porém eles estavam irredutíveis... Até a semana em que eu faria anos, como dizem os portugueses — equivalente ao "fazer aniversário" para brasileiros.
Havia uma semana que eu tinha conversado com a Sabrina, uma grande amiga virtual, sobre pensar que meus pais estarem me escondendo algo da minha adoção, um tempo antes, eu tinha contado toda minha história a ela, uma loucura! Ela me aconselhou a falar com meus pais para ver se eles revelariam algo, mas não conseguia lhes arrancar nada. Não desisti, é claro!
Em uma noite, na semana do meu aniversário, eles começaram — por si só, eu não queria nem papo — a falar sobre estudos e de repente minha mãe perguntou se dirigindo a mim:
— E você, Lety? O que gostaria de fazer na faculdade? — Seus olhos alternavam entre o bacalhau e meu rosto. — O ensino médio acaba daqui alguns meses... você com certeza tem algo em mente. Sempre foi uma guria decidida.
Larguei meu garfo no prato quase sem comida, eu nem precisava pensar para responder aquilo! Era tão óbvio, eles podiam estar me testando!
— Eu quero fazer medicina, mas não quero fazer em uma faculdade do estado. Quero a UFMG ou sei lá, as tão conceituadas de São Paulo! — falei sem hesitar ou vacilar, sabia que precisava ser firme com minhas decisões. — Sei que seria difícil, mas eu faria qualquer coisa para estudar nesses lugares. Eu... eu preciso sair do casulo.
O assunto acabou por aí, e eu achei que seria mais um dia sem sucesso. Terminamos de comer e cada um foi para seu quarto. Como de costume passei no quarto da pequena Eliza, nossa mais nova integrante, a quinta e caçula irmã. Ganhamo-la há quase um ano, e ela é o xodó de todos. Nosso anjinho de cabelos loiros.
Ao passar pelo corredor encontrei a porta do meu quarto com uma pequena abertura, já sabia: meus pais estavam lá. Será que resolveram me ouvir? Ou será que vieram cortar o mal pela raiz e dizer que eu não poderia fazer o que eu queria?
Lembrei-me da Dayse antes de entrar. Das minhas três irmãs, ela sempre foi a mais apegada a mim, mesmo que a Bárbara tenha mais tempo de convivência comigo ou que a Eliza seja nosso xodó. Eu era sua ouvinte e confidente dos seus dias. Fossem eles ruins ou não. Incrível que sou nove anos mais velha que ela e ela me ouve e tenta compreender tudo que eu digo. É incrível também como sabemos o que se passa com a outra em apenas um olhar. Se um dia eu saísse de casa, uma das coisas que eu mais sentiria falta será isso.
Mas acho que ela foi a mais "encolhida" em relação aos nossos pais, ela também é como eu que queria conhecer os pais biológicos e tudo mais. Porém, diferente de mim, o orfanato em que ela estava tinha registro, e os pais dela deixaram nome e endereço para caso a filha quisesse os conhecer, contudo não poderia viver com eles.
Sim, os meus documentos não estavam no orfanato em que falaram que eu fui entregue. Eu acho isso muito estranho, eu não tenho com quem contestar. Entretanto, a Dayse, ela teve sorte, os pais dela deixaram claro que não tinham condições de criá-la, entretanto, se fosse do querer dela, poderiam se conhecer — e isso aconteceu algum tempo depois. Ela não sabia a sorte que tinha... Não sei por que, mas a menção de pais biológicos e meu sonho de estudar fora fez meu coração saltar.
Respirei fundo várias vezes e entrei no quarto, como previsto meus pais estavam ali. As mesmas poltronas de quando a primeira hipótese de uma mãe de sangue bateu à minha porta.
— O que foi? — perguntei me jogando na cama defronte à eles.
— Queríamos conversar com você — meu pai disse sério, eu assenti. Poderia ser qualquer coisa, mas ver meu pai Thales sério trazia um pouco de medo.
— Podem falar.
— Sabemos que você quer ir para a Terra do pão de queijo ou para... — Seus olhos encaravam tudo, menos eu.
— Minas Gerais, mãe — a corrigir sorrindo, mesmo suas palavras fazendo meu coração palpitar.
— Certo, ir para Minas Gerais ou São Paulo estudar medicina. Nós, eu e seu pai, conversamos bastante esses dias, colocamos todos os prós e contras disso na mesa. Seria uma grande responsabilidade posta a você, Letícia. — Ela finalmente me olhou nos olhos. — Morando sozinha, uma cidade nova, um novo jeito de estudo, eu imagino.
— Sim, mãe. Mas onde você querer chegar? — questionei ansiosa demais para ter que ouvi-la falando todos os perigos dos outros estados que eu tinha certeza que ela falaria.
— Nós decidimos, Lety — meu pai começou —, se você não pegar nenhuma recuperação nesses últimos trimestres, se você continuar empenhada e prometer nos visitar todos os feriados, nós deixamos você morar e estudar fora de Santa Catarina.
Abri e fechei a boca várias vezes. Meu Deus! Definitivamente não conseguia falar nada, somente os abracei forte.
— Apoiaremos você em o que for preciso, em novembro você poderá ir para lá, se quiser, escolher um apartamento. — Meus olhos se arregalaram assim que eu ouvir o "ir para lá" da minha mãe. — Será nosso presente de quinze anos que você falou que queria guardar, e o de dezoito anos será te manter por seis meses lá, até que se acostume e se estabeleça.— Porém, você terá que se decidir se quer Minas ou São Paulo logo! — Meu pai brincou. De todas as decisões que eu tinha que tomar, essa era a mais complicada.
— Meu Deus! — Eu sorri, sem acreditar naquilo e eu os abracei mais uma vez. — Obrigada, mama e papa. Eu vou decidir, até meu aniversário!
Quando os soltei minhas mãe tinha lágrimas nos olhos; eles não acabaram, deduzir.— Tem outra coisa que queremos falar contigo. — Eu estava certa.
Não tinha certeza se queria. Havia algo na expressão deles que me deixou receosa. Apertei a correntinha com pingentes como tesoura, bisturi, estetoscópio e um termômetro minúsculos no meu pulso. Algo estava errado. Ou tudo estava errado. E eu estava prestes de descobrir o quê.
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Pessoal, esses foram os capítulos de estreia, por favor, não deixem de comentar para eu saber o que estão achando ♥
Próximo capítulo vem assim que eu finalizar o capítulo de Entre o Real e o Virtual, ou seja, ambos serão postados no mesmo dia.
Até!
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Fragmentada (Spin-off de EoReoV)
Short StorySpin-off de Entre o Real e o Virtual Adoção. Pais biológicos versus pais adotivos. Orfanato. Psicólogo. Poder paternal. Adotante. Guarda tutelar. Todos esses termos eram conhecidos por Letícia, ela poderia explicar o significado de cada um sem gagu...