03/02/2016

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Tive furo. O professor faltou à última aula da manhã e nós pudemos ir para casa. Abandonei a escola o mais rápido que pude, a minha cabeça a mil à hora e bem longe dali. Tinha que estudar. Tenho teste amanhã e ainda não tinha estudado quase nada. Estava a desesperar. É tanta coisa, tanta coisa ao mesmo tempo... Testes, trabalhos, fichas e TPCs, como esperam que tenhamos tempo para tudo?
É nestes momentos que um furo já não sabe a furo. O furo costumava significar uma simples hora e meia de descanso e paz, um passeio até algum sítio de que gostasse. Mas não. Agora é só a escola, porque a escola ocupa todo o tempo que temos livre. Às vezes pergunto-me se o ministério da educação tem alguma consideração por nós. Com programas tão exigentes, tanta matéria, tanta coisa para estudar, parecem esquecer-se que nós somos adolescentes... Que temos sentimentos.
Raios, eu nem tenho tempo para ter sentimentos. Eu sou daquelas pessoas que sente tudo muito intensamente, para quem as coisas mais insignificantes ganham enormes dimensões. Faço uma tempestade num copo de água, expludo por tudo e por nada. Neste momento, porém, estou a sufocar na garganta o grito mais agonizante. Cada vez que a minha mente começa a deambular para fora das páginas do livro de Química, forço-a a voltar a aproximar-se. Ignoro os apelos do meu coração para se expandir e se exprimir e para eu passar algum tempo a centralizar-me nele. Simplesmente não dá. A mais recente crise da adolescência coincidiu com a época de testes, e então eu tenho que fingir que nada se está a passar, que está tudo normal, que não estou a morrer por dentro. Para enganar quem? Só a mim própria. Não estou pronta para isto. Não estou pronta para afastar sentimentos, nunca fui boa a ouvir a razão.
Quando saí da esocla, telefonei à minha mãe. Senti necessidade de chocolates, para disfarçar a dor, mas sair do caminho para ir comprá-los ocupava muito tempo. O meu estado de ansiedade era tal que tive que pedir à minha mãe para me dizer que podia perder esse bocadinho de tempo, que as minhas notas não iriam baixar por isso. Porque eu sozinha já nem tinha capacidade para chegar a essa conclusão.
Meti então pelas ruas estreitas que conheço tão bem. Conheço-as demasiado bem para me perder nelas. Ah... Como seria bom! Perder-me para nunca mais me encontrar. Começar de novo, deixar o estudo e os dramas, nunca mais teria que passar os portões daquela escola. Começaria uma vida nova, uma vida clandestina. Fora da lei da escolaridade obrigatória, afastada de todos os que conheci até agora... A ideia atrai-me, mesmo com todo o seu potencial negro e avassalador. É visível o ponto a que cheguei, este ponto de saturação que é muito mais do que uma jovem da minha idade devia aguentar... Será normal sentir tal atração pela anarquia? Ao ponto de considerar seriamente desistir de tudo? Será mesmo essa a única forma de liberdade a que posso, um dia, aspirar?
Agora, com mais calma, tenho dúvidas. Daqui a poucos anos serei adulta, e afastar-me-ei deste lugar. Irei para uma cidade onde as ruas me serão completamente desconhecidas, onde me possa perder. Onde cada pedra não tenha gravada uma história do meu passado. Não voltarei a entrar naquela escola onde todos exibem sorrisos de plástico e tentam provar que são melhores que os outros à sua volta, mesmo quando, a maioria das vezes, não o são.
Sou da opinião que o mundo não está codificado no show off. Não aprovo o culto das aparências e desprezo a hipocrisia, mas isso não faz de mim menos hipócrita: também eu vou para lá com um sorriso de prateleira cumprimentar pessoas de quem não gosto e com quem nunca falaria noutra situação. E detesto-me por isso. Detesto-me por encaixar numa sociedade que odeio. Detesto-me por estar formatada no modelo de estudante do secundário, que nem sequer tem tempo para desenvolver uma densidade psicológica apreciável. Sou mais um boneco acéfalo, uma capita numa multidão, uma personagem tipo, alguém que cabe perfeitamente na caixa.
Eu não era assim. Eu tinha uma personalidade própria, tinha individualidade. Era original e não me preocupava com o que pensavam de mim. O que mudou, deste então?
O tempo. Deixei de ter tempo para cultivar a minha independência, deixei até de observar a vida com espírito crítico. Os dias começaram a avançar tão rápido que eu fiquei para trás. Eu corri, ainda tentei acompanhá-los, mas tornou-se impossível. E quando paro e olho á volta, a vida passou por mim.
Estou aqui. No meu quarto. O livro de Química está aberto à minha frente, mas eu não estou a estudar. Vou ter que o fazer, vou ter que pagar por este momento de Filosofia. É mais uma direta que faço. Mas, na verdade, valeu a pena. Porque nada do que escrevi foi planeado, foi simplesmente surgindo, como se a velocidade dos meus dedos superasse o meu pensamento. E assim, fui aprendendo algo de novo enquanto escrevia. Fui tendo acesso a um novo olhar sobre o mundo. A uma perspetiva mais real.
Não posso caber na caixa. Tenho que ter a mente aberta, e sair da caixa, mesmo que ela esteja fechada. Os outros são os outros, e eu sou eu.

Eu sou única.

Desabafo 03/02/2016 - One ShotOnde histórias criam vida. Descubra agora