MIAUZINHA
Meu tio Juca Borges, que Deus o tenha, foi um desbravador dos ermos do Triângulo Mineiro nos idos de 1930. O sítio da família de meu avô ficava num mundaréu de terra seca escorado numa região pantanosa conhecida como Bagagem. As terras estavam entre o que era o município de Frutal e Uberaba sendo mais perto o distrito de Esplanada, porto do lado mineiro do vapor de atravessar para o Estado de São Paulo. Muitos de meus tios nunca saltaram o rio Grande e a maioria não conheceu cidade grande, como é hoje a cidade de Goituba-GO com pouco mais de cinqüenta mil habitantes. Todo mundo da roça tinha medo de visitar cidade, e se encantar com os mistérios das ruas, da noite e ser engolido pelo progresso.
Em 43/44, estava um perigo sem conta aparecer onde tinha polícia porque quem estava em idade de servir ao exército, isto é, dos 21 aos 45, corria sério risco de ser recrutado como braço para a guerra. O sujeito era pego na marra, feito seu alistamento "voluntário" e quando a família menos esperava estava embarcado nalgum comboio militar da FEB – Força Expedicionária Brasileira. Muitos infelizes apanhados de supetão e mandados para a guerra só voltou a notícia que havia morrido em combate nos campos da Itália. Meu tio Juca por prevenção não ia nem em povoado sem polícia, com medo de ser abduzido pelos homens da guerra. A maior diversão dele e de seus oito irmãos era caçar, principalmente onça. Quem matava uma onça sozinho era respeitado até pelos índios das tribos distantes e quando aparecia na oca deles era agraciado com os prazeres duma noite com as mais belas índias da tribo.
Vai daí que numa destas caçadas mataram uma pintada com mais de nove arrobas. Quando foram tirar-lhe o couro para levar como prova do feito, perceberam que a danada estava prenha, chegadinha para parir e resolveram abrir-lhe a barriga fazendo uma cesariana sem o saber. Tiraram um filhote vivo, pronto para o mundo, coisinha das mais lindas. Os três caçadores ficaram ouriçados com o filhote e ninguém teve coragem de sacrificá-lo, porque achavam ser covardia com o bichinho recém nascido. Botaram o bebezinho num saco e levaram-no para a fazenda. A oncinha não sabia como era o mundo selvagem dos felinos de sua espécie e cresceu de amizade com o povo e animais do lugar se amamentando na cadela Baleia, de filhotes na ocasião. A cadela achou estranho aquele filho postiço, mas por receio dos patrões aceitou o encosto. A ferinha comia até restos das refeições como se fosse um cachorro. Até os animais da fazenda, arredios com aquela qualidade de bicho, foram se acostumando com a oncinha, viraram amigos. Os rapazes deram-lhe o nome de Miauzinha.
A oncinha cresceu e aos dois anos de idade começou a sentir as farras do cio e numa noite escura apareceu uma onça macho, bicho vigoroso, de paquera pelas redondezas querendo namorar a donzela domesticada. O cheiro do feromônio dela foi longe atraindo pares de sua raça e os caçadores tiveram de abrir uma exceção de caça permitindo que ela fosse se encontrar com o pretendente. A farra do casal durou até pela manhã, com todo mundo de cabelo em pé, ouvindo o ouriço deles, com medo do macho estranho. Os miados dos dois lá no canavial parecia o rugir de uma centena de gatos juntos. No final da tarde do dia seguinte Miauzinha veio se despedir da família. Estava feliz, mas toda lanhada da arruaça madrugadeira. Roçou na perna de todos, miou dorido respondendo aos chamados do seu macho lá no mato e se foi. Ele não quis dar as caras para pedir a pata da donzela. As mulheres da fazenda, minhas tias e as empregadas choraram de felicidade e de saudade de Miauzinha, mas era o destino dela.
Passado um ano daquela noite, aconteceu o maior ouriço dos cães do terreiro acuados no medo e no atiço de caçada. Foi preciso tio Juca tocar buzina para acalmar o forrobodó, quando os cães arrefeceram o assanhamento apareceu nos cabeços do canavial a onça Miauzinha e estava acompanhada dum filhote pequeno. Os movimentos no mato indicavam que o pai da cria e companheiro dela estava na espreita, vigiando os movimentos, se fossem hostis certamente defenderia sua prole. Ela veio cumprimentou todo mundo ao modo de esfregar nas pernas. Seu filhote velhacava feito pulga de hotel, com aqueles amigos diferentes de sua mãe. Não estava acostumada a este tipo de amizade, normalmente sua familiar não mantinha relacionamento com nenhum bicho. A onça brincou com o cachorro Barão, com a cadela Baleia e com o gato de Botas. O filhotinho ficava cada vez mais arisco, pensando em abocanhar pelo menos o gato, um parente, menor, mas que servia perfeitamente a um banque. Passado meia hora veio um miado estrondoso lá do canavial e os cães ficaram em pé de guerra para defender a amiga. Porém ela novamente se despediu de todos e se foi com sua família. Foi a última visita de Miauzinha. Nunca mais a viram. Possivelmente o progresso levou seu couro para ser pendurado na varanda d'alguma fazenda da região. Este foi parte do preço do progresso, devastando o sertão. Nunca se sabe.
Pois é,
Ap. de Goiânia, GO, 03FEV2012
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Delegado Eurípedes III
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MIAUZINHA
Short StoryUm filhote de onça foi capturado e o roceiro resolveu criá-la como animal de estimação. MAs.....