Claiton Scherer
Nasceu em Blumenau/SC, pseudônimo: Victório Cambará.
Contato:
claitonscherer.40@gmail.com
Aurora
O velho bebia desde as três horas e lá pelas seis mal parava de pé. A mãe se atrasou para voltar do serviço, é quase certo que vai ter briga de novo, sempre tem quando a mãe se atrasa e o pai bebe, sei lá o que passa na cabeça dos borrachos, pra arrumar encrenca motivo não falta.
Ele já veio umas dez vezes espiar na porta do meu quarto, conferir o que eu tô fazendo. Não tô fazendo nada, nem ele, o que é irritante para os dois. A diferença é que eu não passo o dia bebendo.
Ainda.
Quando a mãe chega, fica aquele clima, não há discussão mas também não há diálogo, três mudos nesta casa fria, o pai olhando a mãe com a desconfiança que a cachaça e a falta do que fazer trazem, eu sentado neste quarto fedendo à porra derramada inutilmente, olhando para estas paredes manchadas com ar de fúria. A vontade que eu tenho é chegar na frente do velho, sacudi-lo, dar uns tabefes, hei, a mãe se matando de trabalhar pra pagar as contas e tu aí, imaginando o quê? Mas ele me acusaria de tudo, vagabundo, punheteiro, folgado. E teria razão, mais uma briga inútil por nada.
Melhor sair por aí, mesmo sem ter pronde ir.
Espero algum tempo, até a noite se instalar por completo, visto minha velha jaqueta de guerra e saio do quarto.
O velho está na posição de sempre: sentado quase dentro do fogão de lenha, a portinha aberta pra provocar bastante fumaça, esperando que alguém reclame pra ter motivo pra discutir e descontar sua frustração. Digo pra mãe que vou sair e ela apenas pergunta se não vou jantar primeiro. Não, comer na presença do velho me faz mal. Digo que como depois, sei que ela vai deixar comida pra mim no fogão. Mãe é tudo, a gente só se dá conta disso quando elas não estão mais aqui.
O velho mal ergue a cabeça, mas eu sei que esses olhos nublados pela cachaça estão vigiando tudo, principalmente os movimentos da mãe. Vontade de chutar a porta deste fogão, sair no tapa com o velho pra aliviar o caroço que se forma na minha garganta, mas seria pior, então só viro as costas pra ele e saio.
Na rua, me sinto meio perdido: ir para onde? Encontrar amigos? Mas que amigos, se mal tenho conhecidos? Mulheres então, nem pensar, não tenho muita sorte com elas.
Voltar para casa? Não, eu mal saí de lá e não quero voltar pra sentir a presença opressiva e cambaleante do velho, os suspiros da mãe, a casa sempre fedendo a fumaça. Melhor caminhar, passar cento e dezoito vezes por baixo da caixa d’água, rondar as mulheres à procura de uma que se digne pelo menos a olhar pra mim, mentindo pra mim mesmo que tá tudo bem, a vida é bela e amanhã é outro dia. Ora merda, a vida é esse palavrão cabeludo, o amanhã, uma série de dias iguais...
Definitivamente, hoje meu humor não está dos melhores, a opção é encher a cara pra esquecer tudo: o velho e seu fedor de cachaça e falta de banho, a mãe com sua tristeza, a minha casa, as noites vazias que eu passo diante de um aparelho velho de televisão... Mas cadê dinheiro pra beber? Aí eu lembro do cartão e da senha da vó, sou eu que recebo a aposentadoria pra ela, limite de mil reais, tô feito... E antes que o remorso me atinja já estarei bêbado feito um gambá, dane-se, a família vai disputar no tapa os bens e o dinheiro quando a velha se for.
Sigo rumo ao centro. Na escada da igreja luterana, alguns moleques sentados ficam rindo depois que passo. Vagabundos, maconheiros ou só desocupados sem nada melhor pra fazer? Fodam-se.