"Não aprendeu a lição da vida quem não domina o medo de cada dia."
Ralph Emerson
Eu sou alguém, se é que posso ser chamado de alguém, que nasce junto de cada um de vocês, e passará cada momento de sua existência ao seu lado. Desde a primeira golfada de ar nos pulmões até a última, do primeiro passo a queda, e até naquela ardência do primeiro gole de álcool em sua garganta.
Alguns lidam comigo em mais perfeita sintonia fazendo de mim uma motivação, quase como um amigo. Já outros me veem como um monstro, tornando-me um grande inimigo, que aos poucos cresce dentro de si e fica mais forte, virando algo maior que pode transformar sombras, em fantasmas; pessoas, em demônios; que faz cada dia ser uma luta interna em busca do que é real ou não.
Eu sou o medo, nesta história especificamente, o de Clara, a doce garota dos olhos de mel.
Durante toda vida Clara teve um receio terrível de quase tudo, principalmente da solidão, e não por estar realmente sozinha, mas daquele isolamento interno que criara em seu coração e ia a consumindo aos poucos. Por fora parecia ser a garota mais feliz do mundo, mas por dentro, era cheia de dúvidas, paranoias, traumas e pode-se dizer que na maior parte do tempo, incapaz de reconhecer qualquer sentimento amigo que alguém pudesse tentar lhe demostrar.
Acho que estou me adiantando um pouco em descrever como ela passou a se sentir, talvez deva começar da causa destas aflições que abalavam Clara.
Era final de julho, e caia uma chuva fina de inverno, como sempre, a pequena clara brincava sozinha em sua cama, as vezes parando para olhar pela janela, enquanto ouvia o riso das outras crianças na sala.
- Mana, mana? – A voz comum daquele garoto também órfão invadiu o dormitório feminino, mas a ainda menina Clara não parecia estar ouvindo. - Clarinha, trouxe um chocolate quente para você.
Ela podia ver o reflexo daqueles olhos verdes, e era nisso que seu pensamento se perdia toda vez que encontrava aquele olhar, nas gotículas que caiam pela janela. Aquela cor parecia se espalhar pelo ambiente toda vez que a via.
- Obrigada Rafa, não precisava.
A cada gole daquele chocolate, ela se perdia um pouco mais no verde que Rafael irradiava pelo quarto, de todas as coisas ruins daquele orfanato em que viviam, aquilo era tudo que tornava o lugar um mundo encantado. Para a pequena Clara, com apenas 6 anos, ele era seu príncipe, e com uma troca de olhar, já sabiam que travessuras iriam aprontar, o melhor para se esconderem e cada tristeza, as vezes pesadas demais para duas crianças.
Rafael, 4 anos mais velho, esteve presente desde o primeiro passo dela, sempre a ajudando, porem triste de ver que sua melhor amiga era uma criança mais solitária que as outras.
- Sabe aquele casal que veio aqui outro dia? - Sem ter nenhuma resposta, Rafael continuou falando - parece que gostaram bastante de você, ouvi dizer que vão te adotar.
- Eu não sei se isso é muito bom. - Clara falou com um ar de tristeza.
- Claro que é! Todo mundo aqui sonha com uma família!
- Aí não vamos mais nos ver.
Na verdade, não era deixar de vê-lo que a incomodava, era partir do conforto que tinha ao estar ali, era abrir mão também de poder ver todos os dias aqueles olhos ternos, a única lembrança que tinha de sua mãe Catarina, antes do incêndio que causara sua morte e a do pai de seu grande amigo, na favela em que moravam, os deixando sem nenhuma família.
- Deixa de bobagem, podemos escrever cartas, e eles podem te trazer aqui. E sabia que tem um filho da minha idade? - Rafael falava animado, sonhando com uma família para ele também. - Aposto que vocês vão se dar bem.
- Eu só espero que ele não seja tão chato quanto você - E com aquele olhar doce e infantil, ela o deu um leve empurrão a começar outra brincadeira.
Na metade de setembro todos os esquemas necessários para a adoção estavam resolvidos, e Clara foi morar com sua família adotiva. A empatia com seu novo irmão foi imediata e reciproca, porém seus pais, Mariana e Caio, eram as criaturas mais bondosas que já vi e a amavam como se fosse filha de ventre.
Ela teve, desde o primeiro dia que entrou naquela casa, tudo de melhor, a escola, os brinquedos, as viagens.
Clara e Mariana tiveram a chance de construir uma com a outra a relação de mãe e filha que a vida havia roubado anteriormente, elas foram aprendendo uma com a outra a se reconhecer. Caio era um pai muito bondoso, tinha em sua face a rigidez que era exigida por sua profissão, policial, mas possuía um coração gigante e era um bom pai.
Apesar de sua vida ser aparentemente perfeita agora, Clara sentia imensa falta de Rafael, principalmente porque o seu terapeuta pediu que evitassem o contato deles, acusando que o motivo de tantas brigas com Otávio seria a forte ligação com seu antigo amigo.
Dos seus oito aos treze anos, tudo foi seguindo normalmente, Rafael se tornou apenas uma boa memória dos tempos de orfanato e Clara era uma criança feliz, sua relação com o irmão ainda era ruim, mas nada em comparação aos dois primeiros anos de convivência.
Essa paz mudou completamente quando, no dia de seu 14 aniversário, em um trágico acidente de trânsito, seus pais vieram a falecer, a deixando desolada e sobre a guarda de Otávio, que havia completado a maioridade a poucos meses.
-Menina? – Clara ouvira a voz de Otávio chamando na porta.
-Não enche moleque, tô dormindo ainda. - Ela disse cobrindo o rosto com o travesseiro – a mãe e o pai já chegaram de viajem?
Otávio terminou de abrir a porta e sentou na cama ao lado de Clara, agora que olhava para ele via que seus olhos estavam cheios de lagrimas.
- Otávio, aconteceu alguma coisa, onde eles estão?
- O papai e a mamãe, eles sofreram um acidente e ...
Sem mesmo terminar a frase, Clara já sabia que o pior havia acontecido.
Neste momento eu dominara sua mente pela primeira vez, e de tantas outras que viriam e ela teve sua primeira crise nervosa, gritando, se arranhando, até que Otavio a abraçou com toda força e amor que nunca tinha expressado antes.
- Eu estarei sempre com você, não vou te deixar sozinha.
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Os Olhos De Clara
ChickLitUma história onde o medo da garota é o narrador. Ele está sempre presente, e a livra de grandes enrrascadas. Até se tornar um fantasma na vida de Clara, e o personagem principal de sua vida.