Lá dentro pouco importava que dia da semana fosse, que horas o relógio marcasse, qual era o mês atual, ou qual o ano...
Tudo parecia sempre estar igual. As pesadas cortinas dos quartos bloqueavam completamente a visão do mundo exterior, jamais deixando saber se lá fora era dia ou noite, se fazia sol ou chovia.
O som estridente de uma das rodinhas do carrinho de limpeza ecoava pelos corredores silenciosos e diariamente, a promessa de acabar com o barulho estridente era repetida mentalmente por quem o empurrava.
Por mais incômodo ou desagradável que aquele som se mostrasse, ele tinha a sua utilidade, avisava a presença do doutor chegando...
A maioria dos funcionários do hospital mal lembravam o nome verdadeiro dele, os mais novos só o conheciam como Doutor Morte.
O humilde faxineiro não gostava do apelido, ao menos no princípio, hoje era irrelevante.
Todos os dias ele percorria os corredores da ala onde ficavam os pacientes terminais e em estado grave, por vezes no cumprimento do seu serviço ele era a última pessoa que falava com muitos destes.
Com o passar dos anos a prática ficou tão comum, e sua atuação trazia tanta paz e conforto no momento final daqueles pacientes, que os próprios médicos incentivavam a sua visita. Não que ele tivesse alguma habilidade especial ou macabra, que encerrasse rapidamente com o sofrimento.
Ninguém sabia ao certo o que ele tinha de especial, mas em sua simplicidade e presença, ele trazia conforto aos desesperados, alívio às dores da alma e paz aos corações dos aflitos.
Havia quem dissesse que quando seu rosto magro virava para alguma porta dos quartos e seus olhos azuis se fixavam nela por um instante, logo o "descanso" daquele sofredor chegaria ao fim.
O que era motivo de contestação de muitos, pois havia três pacientes que eram visitados com grande frequência.
Sempre que o doutor terminava a limpeza dos corredores com algum tempo de sobra, se dirigia a um dos quartos. Hoje iria ao quarto de Ava Amélica. Ele jamais entendeu o nome dela, mesmo conhecendo sua fama há muitos anos.
Senhorita Ava, como gostava de ser chamada, fora por muitos anos uma famosa cantora, sua fama chegou a ser internacional. Mas por muitos anos o seu desconhecimento do grande público quase chegou ao nível de sua fama.
Mesmo com toda a debilidade atual, Senhorita Ava possuía ainda uma bela voz aveludada, algo pesada e grave.
O doutor ainda se lembrava dela nos tempos de sucesso. Naquela época havia quem afirmasse que sua voz amolecia o mais petrificado dos corações. E realmente, ele mesmo sempre se emocionava com suas canções, mesmo não tendo uma pedra batendo no peito.
A cada visita o doutor fazia algo especial para cantora. Trazia um dos discos gravados por ela, para que juntos pudessem ouvi-los e se lembrar daquela época de suas vidas.
O quadro clínico de Senhorita Ava não permitia algumas extravagâncias, como manuseio ou manter proximidade com objetos velhos e consequentemente cheios de poeira, cada disco trazido pelo doutor, parecia mais limpo e mais conservado que o anterior, alguns pareciam estar lacrados por décadas, dando a sensação de que naquele quarto a vitrolinha portátil, tão limpa quanto era possível que ficasse, tocava as musicas daqueles discos pela primeira vez.
A outra particularidade no quadro dela, que motivava o doutor a trazer os discos a cada visita, era que ela não poderia conversar por longos períodos de tempo. Trazer os discos era o melhor que ele podia fazer por ela. Talvez a única forma encontrada por ele de lhe dar atenção.
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Últimas Palvras
Short StoryAs pessoas às vezes precisam de pouco, o doutor sempre sabe o que cada um precisa de verdade