Estranho no quintal

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Vou trilhando um caminho sem voltas, um caminho só meu. Quem me ver sorrindo acha que a felicidade é minha companhia. Esgana-se. Eu interpreto transparência para que não se assustem com o meu interior.

Avisto um homem saindo do meio do mato. Trajado de trapos, ele me olha. Me encara. Eu instantaneamente finto seus olhos. Eles são negros como o anoitecer. De relance eu vejo sua barba rígida e grisalha. Seu sorriso é amarelo e lhe falta alguns dentes da frente. Eu aceno gritando "quem é? " Na esperança que me corresponda. Ele foge. Já enfurecida, eu peço para que me espere. Ele não responde. Eu o persigo pedindo que pare. Mas ele é rápido e conhece bem aquele matagal, se esconde e me deixa vagarosamente sem entender nada.

Eu devo estar me perguntando o que cargas d'agua esse miserável faz aqui, no meu quintal, no meu matagal. Eu devo ligar para a polícia, isso não pode ficar impune. Mas esse infeliz já se foi e nem me revelou o real motivo de sua visita.

Talvez aquele seja algum assassino da cidade querendo se esconder, ou até mesmo me matar. Quem sabe um ladrão planejando mais um dos seus golpes ou um estuprador, meu Deus tenho que detê-lo! Mas não... ele me parecia boa gente apesar da sua má aparência. Não devo jugar. Talvez ele era só um pobre morador de rua, buscando algum lugar em que pudesse se aconchegar. Mas eu como esse meu jeito tosco acabei o expulsando. Deveria ter chamado para tomar um café ou até mesmo um xá, quem sabe se ele não toparia dividir comigo essa solidão, essa casa é tão grande para mim sozinha. Talvez ele assim como eu, queria ser apenas bem recebido, bem acolhido.

No outro dia bem cedo busco vestígios da noite passada, bisbilhoto aquele matagal onde aquele sujeito estava. Encontro algo semelhante a um papel. Está sujo, e com marcas de dedos. É um papel contendo perfume de rosas. Estou tomada de curiosidade e de medo ao mesmo tempo. Decido não abrir. Colo no bolso e entro. Chegando na cozinha retiro lentamente o papel do bolso e o coloco sobre a mesa. Puxo a cadeira e me assento frente-a-frente ele. Passo minutos matutando o que poderia ter naquele maldito papel. Poderia ter um aviso de morte, um poema, uma daquelas orações malditas que as pessoas jogam por aí... ou até mesmo poderia estar em branco. A verdade é que poderia ter qualquer coisa naquele maldito. Uma brisa sem pretensão entra pela janela e acaba movendo o pedaço de papel um pouco para o lado. Ele agora está entreaberto eliminando qualquer possibilidade de estar em braço, percebo que ali tem algo escrito. Penso uma vez. Duas vezes. E na terceira decido abrir... afinal o que de mal poderia acontecer. Desdobro lentamente umas das quatro dobras do bilhete. Estou na segunda e sinto meu corpo tremulo e sinto gostas de suor em minha testa. Na terceira percebo que ele não tão pequeno quanto eu pensava, me parece folha de algum caderno velho. Com o desdobramento da folha o perfume desabrochou e dominou o espaço que se fazia preenchido pelo meu corpo. Na quarta e última eu decido fechar os olhos, não podia desistir e também não queria seguir com aquilo, mas já estava tão próximo... naquele momento a folha está aberta e meus olhos também. Finto meus olhos sobre aquelas linhas em branco e na decima terceira linha da folha estava escrito o seguinte: "durante noites eu te observo... vejo o quanto essa doença lhe afeta e lhe afasta das pessoas. Sou um anjo de luz e venho lhe trazer o seguinte recado; Deus te ama, para de chorar. Eu junto a Deus vejo o quanto a solidão te maltrata, o quanto a indiferença das pessoas te machuca. Mas a partir de hoje esse laço está quebrado. Seus dias de sofrimento acabaram filha, você está curada do tormento da aids. Volte a sorrir e espalhe o quanto Deus é bom. Que a paz do espirito santo se faça presente no meio de vós. "

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