Capítulo 4: Será o primeiro dia o pior?

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Vi-o na cama, deitado, virado para a parede. O quarto dele estava exatamente como ele o deixara quando saiu de casa: um armário castanho escuro, encostado à parede da porta, do lado direito desta, mais à frente, com a lateral colada à parede lateral direita do quarto uma cama sem cabeceira,  aos seus pés, uma secretária com estante, uma janela na parede do fundo, com o caixote com papéis, e uma cadeira com roupa na parede lateral esquerda. Era um quarto pequeno, mas tinha espaço suficiente para se estar à vontade lá dentro, principalmente se o quarto estivesse arrumado...

Ele estava na mesma posição que um feto toma na barriga da mãe. Estava tapado com os cobertores todos tortos e desalinhados, como se tivesse havido uma batalha naquela cama. O cabelo dele estava ainda mais desgrenhado do que o normal. Como ainda não tinha a certeza se ele estava a dormir ou acordado, aproximei-me devagar. Espreitei para tentar ver a cara dele.

Um olhar gelado tinha-se apoderado da cara dele. Gelado não.... vazio. Transmitia raiva, fúria, tristeza, angústia, melancolia, saudade.... e ao mesmo tempo nada. Ali estava o André, ainda o recordava a andar de mão dada com a Rita, como se fosse a coisa que o fizesse mais feliz no mundo, e agora ele estava deitado, a fixar a parede, sem reagir, sem dizer uma única palavra.

"André...". Chamei-o subtilmente. "Queres vir comer?".

Não obtive resposta. Pus-me de cócoras, apoiando os braços na cama dele, e disse:

"Anda, precisas de sair daqui um bocado. Lavar a cara, comer qualquer coisa, ir lá fora..."

Ele moveu ligeiramente a cabeça, mas não respondeu.

"Ei, vou abrir os estores, ok?"

Esperei alguns segundos, e, mesmo sem resposta, caminhei até à janela com o intuito de abrir as persianas. Ele precisava de alguma luz...

Porque é que o fiz?

Enquanto o sol iluminava o quarto escuro e pesaroso, eu vi. Vi as olheiras de uma noite passada sem dormir. Vi a fraqueza que a palidez dele transmitia, como se estivesse doente. Vi os olhos inchados e a almofada literalmente encharcada com as lágrimas da dor e da saudade. Vi a porta do armário partida, como se tivesse levado um soco. E ele continuava, quieto, a fixar a parede, como que transformado em pedra, sem se mexer. Sereno, mas não tranquilo.

Confesso que a minha respiração acelerou, fiquei sem saber bem o que fazer e as lágrimas queriam fugir. Mas não valeria de nada se eu me deitasse ao pé dele a chorar! Eu tinha de ser forte.

Sentei-me na beira da cama e pus a minha mão no ombro meio tapado dele.

"Anda lá, vá. A tua mãe está preocupada contigo. Anda comer algo, deves estar esfomeado."

"Eu quero... a Rita...", disse ele debilmente, sem parar de fixar a parede e começando a tremer um pouco. "Preciso... d-dela..."

"André...", comecei, sem saber muito bem o que dizer. "Sabes, ela não vai voltar... mas ela continua aqui, contigo, para te guiar, para te ajudar. E ela não deve querer que te sintas assim. Ninguém quer. Eu sei que é difícil, eu também estou muito triste, e eu sei que a vossa ligação era mais forte, mas desce ao menos. Vai tomar um duche, vai comer. Reage! Nós precisamos que fiques connosco."

Esperei alguns minutos, à espera de uma reação, sem saber mais o que dizer.  Como não obtive nada, virei-me para a porta para sair. Estava a desistir, pelo menos por agora. Não o podia deixar assim...

"Bruno?". 

Acho que nunca fiquei tão feliz por ouvir o meu nome a ser chamado.

"Diz, mano."

"Eu... eu vou fazer o que tu disseste... mas eu preciso dela... O que é que eu faço da minha vida sem ela?", ele disse, desta vez com a cabeça virada para a porta, onde eu me encontrava, e a deixar as lágrimas rolar, como se nada fosse. Como se estivesse habituado.

"Ei, eu estou aqui para ajudar. Tenta focar-te nos momentos bons que passaste com ela... Vá, levanta-te e vai tomar um duche, espero por ti lá em baixo", disse, e caminhei novamente para a cama, para o abraçar e ajudar a levantar.

"Olha... o-obrigada", acabou por me dizer, no fim do trajeto para a casa de banho. 

"'Tou aqui é para ajudar, sabes bem como é! Se precisares de alguma coisa, chama!", respondi e esperei que ele fechasse a porta da casa de banho para descer, respirando fundo de alívio e um tanto de cansaço.

Passado uns 20 minutos, ele desceu, com o cabelo ainda molhado, sendo abraçado de imediato pela mãe.

Tínhamos estado à espera dele sem tocar na comida, por isso sentámo-nos os três a comer.

O André não estava a comer à pressa como era habitual, nem a empanturrar-se, mas estava a comer. Não tinha o habitual sorriso no rosto, mas não parecia tão deprimido como antes. Dei por mim a pensar: "Esta manhã não está a correr TÃO mal como eu pensei... mas preferia não ter de passar por isto. É a primeira manhã, o primeiro dia sem ela... Será o primeiro dia o pior?". 

Chamadas às 3 da manhã...Onde histórias criam vida. Descubra agora