Em Santa Maria da Boa Água nada corre, mas se arrasta. Não se sabe dizer ao certo se aquela era uma vila ou uma pequena cidade. Ou uma mistura das duas. A água pode até ser boa, mas o ribeirão que passa ao longo da lugarejo é longe de ser caudaloso. Tudo tem a medida do que se precisa e jamais, em momento algum, alguém sentiu necessidade de algo que ali não estivesse. Um manto de casas subindo e descendo os elevados do terreno montanhoso. Quem vivia, vivia do cultivo. Cultivava-se a roça, a fruta, a hortaliça, o rebanho, as aves, as amizades, o ar puro e a água que há muito tempo atrás disseram que era muito boa.
Como a perfeição é para o paraíso, feito por Deus e desperdiçado pelo homem, a pequena cidade de casas ao rés-do-chão, entre outros sobrados de porta para a rua, era governada por Valdevino de Oliveira, prefeito municipal. Valdevino era o típico sujeito faraônico, que acreditava que a glória do tamanho era um sinal de avanço, ainda que não se soubesse para qual direção. Alimentava seu sonho: fazer de Santa Maria da Boa Água uma grande cidade.
Nem que para isso tivesse que passar por cima da câmara, dos munícipes, do próprio orgulho e hombridade. Nada substituiria a glória de entrar para a história como o homem que pôs Santa Maria da Boa Água na rota do desenvolvimento e avanço humanístico-financeiro. Foi por isso que não largou do pé de seu chefe de gabinete, Melquisedeque Barbosa, um só minuto quando este retornou de uma semana inteirinha na cidade grande.
Porque Melquisedeque tinha ido ao shopping center. E o braço direito do prefeito era parado de esquina em esquina pela horda populacional que perguntava, enfim, como era esse tal monumento do consumo moderno:
- Um espanto! Uma rua que dá para dentro...
Via-se, pelos rostos dos interlocutores, ora certa descrença na descrição, ora certo olhar de confusão mental por um primor de conceito comercial urbanístico emanado por alguém que ajudava a cidade trocar o passo. Só não se sabia com absurda clareza se era um passo para frente ou para trás.
Melquisedeque virou o herói do mês em Santa Maria da Boa Água e até mesmo Valdevino de Oliveira confessava para si mesmo, diante do espelho, uma profunda inveja de seu subordinado, cuspindo espuma de dentifrício e mandando água no canto dos olhos lá pelas seis da manhã. Aquilo não ficaria barato. Em breve, a cidade entraria na rota do futuro glorioso pelas suas mãos. Muito melhor do que visitar cidade grande para passear no shopping. O regozijo da sua eternidade, a efeméride que o levaria para os píncaros da altivez, assento definitivo, vitalício, no olímpo da transformação do mundo. E que seu chefe de gabinete fosse para o tártaro, que era bem o lugar de quem bate perna em antros do consumismo dilapidante.
Assim era a vida por aquelas paragens. Homens e mulheres no campo, crianças na escola, um penca de funcionários públicos fazendo a área urbana funcionar e alguns comerciantes locais no desespero de que o prefeito abraçasse a idéia de comércio moderno trazida por Melquisedeque. Pensaram que um centro comercial como esses de cidade capital, até mesmo um hipermercado, e estavam todos à falência. Que falta de sossego! A sorte é que um grande comércio como esse só vinga onde há bastante gente. Um empreendimento arriscado para um lugar que não passava de trinta mil pessoas. Agradecidos, respiravam aliviados.
Tirar, entretanto, da cabeça do prefeito Valdevino o intento de certa modernidade para Santa Maria da Boa Água é que se mostrava tarefa de vulto. Daria para se chamar de fica tal idéia, quando não obsessão. Se esse negócio de rua que dá para dentro parecia não funcionar muito junto ao eleitor santamariense, quem sabe um ícone dos tempos contemporâneos: um prédio de apartamentos. Um daqueles bem altos.
O negócio do shopping center não atraía muito. A cidade era pequena, o comércio era aquele mesmo, nem forte, nem fraco, apenas na medida das necessidades da população dali. Nos casos de algo mais ou bem mais sofisticado, comprava-se na cidade vizinha. A única maneira de mudar o cenário era trazer gente nova, pessoas interessadas em morar bem numa cidade tranquila. Uma cidade onde todos se encontravam na praça, onde se frequentava a missa, todos no footing do final de tarde de domingo, nada de barulho, nada de som alto, nada de algazarra. Um novo tempo para Santa Maria da Boa Água, tempos que demandariam novos serviços, um novo jeito de se comercializar as coisas.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Progresso
Short StoryWhat would be the impact of a tall building in a very calm, near rural, upstate town in a remote part of Brazil? In this short story, the fortunes and misfortunes of Santa Maria da Boa Água, a small town far from big cities, when local mayor Waldevi...