Capítulo Único

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- Eu não sei como tudo começou. Na verdade, eu sei como tudo terminou. Tentarei ser breve:

Depois do lançamento mundial do glasstrix, um terço da população mundial conectou-se no servidor da IGD (Intracerebral Global Digital). Menos de seis meses depois, mais da metade da população já estava logada no glasstrix. Não vou mentir que no começou foi estranho. Todos aqueles fios plugados em um futurístico capacete e aquelas luvas e botinas estranhamente presa em um suporte fixo que interligava ao capacete pareciam os filmes e séries de ficção científica que assistia com meu pai.

A aprendizagem e instalação foram simples e dinâmica. Após ser realizada toda conexão, era necessário apenas dizer a frase "Olá glasstrix" e um universo de opções e possibilidades transportavam da tela para seus olhos. A imersão é profunda. Tudo ao seu redor se transforma. É como se sua mente fosse transportada para dentro de um universo digital. O corpo é então escaneado e transformado em bits. Após alguns minutos de assinatura do contrato de acesso total ao glasstrix, era possível conhecer o mundo. Sim, o mundo. Foi por conta disso que, eu, uma pessoa de renda baixa, entrei no glasstrix e consegui conhecer Paris. Lembro-me das histórias quando criança de meu pai contando sobre sua juventude e, claro, sobre o desmoronamento da Torre Eiffel. Por apenas alguns míseros bit-in (moeda utilizada dentro do glasstrix) é possível alugar uma roupa de mergulho especial e visitar a submersa Miami. Ou, se preferir, por um valor um pouco maior, é possível conhecer as ruínas da China Americana, depois da grande explosão (Um dos pontos mais visitados segundo o rank enviado mensalmente pelo glasstrix). Tudo é possível quando está logado. Vale ressaltar que, quando digo tudo é possível, estou me referindo tudo é possível dentro do permitido pela IGD.

Eu não me lembro quando que foi, mas depois da última atualização de software, o glasstrix inseriu um modo de jogo de RPG (Jogo de interpretação de papéis) que extrapolou o limite da realidade. Nele, o indivíduo podia ser tudo aquilo que sua mente pudesse criar. Monstros, elfos, seres gigantes, alienígenas, um ser humano de aparência bela ou horripilante, se assim o quiser. Quantos membros desejava? Qual sua cor de pele? Tem preferência por alguma? Azul e roxo era uma das cores mais utilizadas para pigmentação da pele. Armas? Ah as armas. Como me senti imponente ao segurar uma pesada espada medieval montante de aço damasco. Gastei muito pouco bit-in para adquirir a possibilidade de edição da minha própria empunhadura (Dois dragões se entrelaçando entre eles). Claro que alguns itens e trajes eram exclusivos. Bastava pagar. Mas era um luxo que eu não podia tê-lo. No começo.

Como em um bom jogo de RPG, no glasstrix, as coisas não eram diferentes. Era preciso evoluir seu personagem. Ganhar status além de muitos outros afazeres. Joguei diariamente. Compulsoriamente. E por muito tempo fui o melhor. Ganhei prêmios nunca então sonhados por mim. Fiquei reconhecido. Ganhei muitos bit-in. E gastei-os com itens exclusivos. Foi a melhor época da minha vida. Mas tudo mudou.

Alguns meses depois, um erro de sistema fez com que o banco de dados da glasstrix fosse perdido e o armazenamento da "memória" de cada indivíduo, isto é, a interligação entre o real e o digital, desaparecesse. Para os leigos, assim como eu pensei no início, não parecia algo preocupante. Mas foi sim! E só descobri o que isso realmente significava quando tentei desligar-me do jogo. Mesmo estando um caos no mundo real por consequência da grande explosão, o corpo físico ainda dependia das necessidades básicas. Esta era a regra número 1: Jamais esquecer que existe um corpo físico fora da glasstrix. Existe também uma regra número 2 que criei depois de um tempo logado: Cuidado ao se apaixonar dentro do glasstrix. Parece bobeira esta regra, mas como o mundo real não nos propiciava contato físico devido ao cenário caótico externo, minha mente não podia deixar de pensar que aquela estonteante loira de olhos azuis e corpo exuberante na verdade era um senhor obeso escroto de 65 anos.

No início, muitos morreram por quebrar a regra número 1. Então me policiei. Toda vez que logava, deixava um despertador próximo de meu corpo físico e o programa para tocar ininterruptamente até meu corpo reagir e eu me desligar. Nos dias atuais, não temos mais músicas ou cantores e só nos restou requintes de um mundo destruído. Para minha sorte, meu pai conseguiu guardar um pen-drive com algumas músicas. Não sei se elas faziam sucesso na época, mas de todas, a minha favorita é "Who Wants To Live Forever" do Queen.

Foi então que meu despertador tocou.

Tentei. Tentei. Como tentei sair do glasstrix. O menu inicial havia desaparecido, o que de fato me causou estranheza, mas pensei que fosse alguma atualização no layout da tela. Mas depois de algumas horas, percebi que havia um problema.

Os outros jogadores se desesperaram rapidamente. Alguns, aceitando o fim, partiram para libertinagem sem fim. Foi muito estranho de ver dois monstros, sendo que um parecia com um rinoceronte e o outro um dragão, com uma jovem garota de quatro braços. Outros, em uma medida desesperada, se jogavam do alto dos prédios. Pobres coitados! Haviam esquecido que no jogo não havia morte. O personagem apenas desapareceria e surgiria no mesmo lugar perdendo apenas a experiência adquirida caso tivesse vencido algum oponente. Falando nisso, outros se gladiavam em batalhas sem fim.

Toda loucura durou alguns poucos dias. Então tudo cessou. O silêncio tomou conta. Muitos já haviam sucumbido. Para minha sorte, no mundo digital, não há dor. Quantos dias mais meu corpo físico aguentará? Não saberia dizer a resposta. Mas sei que está próximo. Por sorte, se isso pode ser chamado de sorte, a ponte que separa o real do digital está enfraquecida. Posso ouvir claramente minha música preferida tocando ao lado de meu corpo. Talvez seja apenas um devaneio. Não sei. O que me resta é aguardar meu fim.

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