Colonizador

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Cada pequeno filamento daquela mente complexa se contorcia. O organismo estava em adaptação. Ainda não se acostumara com o oxigênio em abundância, nem com a pressão da nova atmosfera.

Estava deitado sobre o concreto. A noite de lua nova era fresca, mas o ar ardia na pele, devido ao alto nível de nitrogênio.

Apesar de a temperatura ali ser adequada, sem capacidade de queimar ou congelar, havia outros fatores fisiológicos interferindo no acondicionamento.

Os poros absorviam o metano disponível, enviando-o para a corrente sanguínea, onde seria processado e transmutado em energia. Só que não era o bastante. Precisava de mais nutrientes. Era provável que não sobrevivesse durante muito tempo. Necessitava de um corpo mais ajustado e conveniente para a vida nas presentes condições.

Antes de agir, no entanto, devia recuperar-se um pouco mais da turbulenta passagem pelas camadas distantes da atmosfera.

O planeta natal dele estava devastado, assolado por disputas por território e uso indiscriminado de recursos naturais. Pouco restava a ser feito. Muitos seres vivos tinham caminhado para a extinção. Poucos ainda lutavam para a manutenção do ambiente. Era o único planeta habitado do sistema de Kepler-90, na constelação de Draco. Infelizmente, em pouco tempo, seria apenas mais um mundo desértico, estéril e inabitável.

A última esperança de perpetuação daquela espécie inteligente surgiu de uma organização não governamental chamada Colonus. Era um programa para colonização de outros sistemas solares da Via Láctea.

Cem recrutas, geneticamente selecionados, treinados à exaustão. Cem naves preparadas para decolagem. Vinte localizações planejadas, após o envio de sondas exploratórias. Vinte astronautas escolhidos para encabeçar as missões.

Todos passaram por um procedimento criogênico e acabaram acomodados em cápsulas de viagem criadas para ultrapassar velocidades de mais de mil vezes a da luz. Foram, por fim, enviados aos mais remotos cantos da galáxia, em grupos de cinco.

As naves saíram acopladas em formação de uma ponteira e duas duplas em sequência. Cada quinteto teria um líder, o qual desceria primeiro ao território, com a finalidade de avaliar o novo local, testar a adaptabilidade do organismo e disparar o alarme para os outros descerem.

Ele era o líder designado para primeiro chegar à Terra, localizada num sistema solar dentro do braço de Órion da Via Láctea. Tinha apenas mais um ciclo de tempo antes de os companheiros de grupamento desistirem oficialmente. Se isso ocorresse, eles partiriam para o ponto descendente mais próximo, no braço de Sagitário, a fim de se reunirem a outros cinco exploradores e responderem a um outro líder.

"Preciso de um hospedeiro, sem mais demora", concluiu, finalmente recuperado da queda.

Levantou-se com velocidade impressionante. Era leve, etéreo e cheio de filamentos limpos, incolores. Os movimentos possuíam uma cadência lânguida e hipnotizante.

Escorregou pelo asfalto, feito um polvo no fundo do mar. A poeira e os resíduos largados pelas ruas não aderiam ao pequeno corpo. Era um fantasma incorpóreo, de massa indefinida, circulando pelas ruas silenciosas da cidade dormente.

Expandiu os sentidos, tentando encontrar um sinal de energia biológica. Precisava de alguém bem disposto.

Ao passar por uma construção alta e larga, percebeu uma presença muito forte.

"Alguém acordado e plenamente ativo", salivou. "Hora de hospedar-me!"

Circundou o prédio com cuidado, subindo pelas paredes de formato curvo. Deslizou pela parte concava, subindo e descendo, sentido a fonte de tanta energia mais perto a cada minuto. Passou para o lado convexo da parede e, como um radar de altíssima sensibilidade, encontrou o ponto em que o dono de tamanho vigor se localizava.

Adentrou por uma brecha na janela do apartamento, que ficava a cerca de cem metros do solo. O cômodo estava parcamente iluminado, mas a criatura não se incomodava com escuridão. Não possuía rosto, olhos, ouvidos ou boca. Era guiada por puro instinto e uma percepção sobre-humana.

O ser terráqueo se exercitava, montado sobre uma bicicleta estacionária, pedalando rapidamente. Assistia a um vídeo pornográfico na televisão, que era a única fonte de luz da sala. Escutava música eletrônica alta, em fones de ouvido intra auriculares. A casa cheirava a carne frita e batatas, resultado do jantar recém consumido. Tato, visão, audição, olfato e paladar. Todos os sentidos trabalhavam juntos, com força completa. "Por isso tanta energia biológica dispensada", percebeu o alienígena.

A porção posterior da criatura extraterreste voou com velocidade sônica, esticando o corpo como uma mola, tornando-se tão fino quanto um fio de cabelo. Sem demorar ou planejar demais, o alien enfiou-se pela narina esquerda do homem, instalando-se confortavelmente na corrente sanguínea, espalhando-se pelo sistema linfático e aderindo ao sistema nervoso. A parte final dele foi puxada para dentro com a força de um tiro, jogando a carcaça humana para fora do aparelho de ginástica.

"Que estranho!", pensou o sujeito. "Por que eu caí? Que dor de cabeça é essa? Será que rompi um aneurisma?"

"Você foi dominado", escutou um pensamento respondê-lo. As memórias do novo corpo tinham dado ao alienígena a capacidade de se comunicar na linguagem do hospedeiro. "Com licença, agora esta carne é minha".

Assim, a consciência antiga foi apagada, deixando apenas o essencial impessoal para trás.

"Humanidade, você teve a sua chance. Agora é nossa vez". O parasita, com energia restabelecida, ampliou os novos sentidos para contatar seus iguais, que orbitavam a milhares de quilômetros dali. Utilizou toda a capacidade daquele incrível cérebro humano, quase não acreditando no quão mal utilizada aquela estrutura nervosa tinha sido até então. Ativou cada comando neurológico e conseguiu fazer contato. Transmitiu apenas um sentimento, uma mensagem simples, que para ele agora também podia ser traduzida verbalmente: "Hora de colonizar".

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