Capítulo 5: Memórias

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O André não comeu tudo, mas diria que apesar disso, comeu mais do que eu estava à espera. Tentei levá-lo lá para fora, mas ele só chegou até à entrada principal da casa, absorvendo o calor do sol, de olhos fechados. Ausentou-se para ir à casa de banho, e recusou a minha ajuda, dizendo que ficava bem. 

Passada meia hora, decidi subir, domado pela dúvida e pelos medos estúpidos que me passavam pela cabeça. Subi as escadas e bati à porta da casa de banho, descobrindo que esta estava entreaberta. E não estava lá ninguém. Pensei por um momento, "mas onde raio é que ele estará?", e decidi ir ver ao quarto dele. 

Bati à porta. Passados alguns instantes:

"Entra."

"Então campeão, não voltaste lá para baixo..."

"É, está-se melhor aqui... desculpa, devia ter avisado"

"Não há stress. Queres companhia?"

"Tanto faz... Mas podes ficar"

Atirei-lhe um meio sorriso, mas ele continuou a olhar para o objeto o qual estava a fixar e a mexer desde a minha entrada no quarto.

"O que tens aí, André?", perguntei, realmente confuso e curioso.

"Bem, é... é um relógio", disse, mostrando-mo. Era feminino, branco com os ponteiros em prata e os números a preto, com borboletas pintadas em vários tons de cinza na bracelete e no próprio visor do relógio.

"É bonito, não é?" Perguntou ele. E antes de me deixar responder, continuou:

"Eu ia dá-lo hoje à Rita... É o nosso 3º aniversário de namoro..."

O silêncio tomou o quarto, mas apenas por breves instantes. De repente ele olhou-me nos olhos, com aquele brilhozinho de esperança, apesar de começar a formar lágrimas que caiam silenciosas pelo rosto abaixo:

"Ainda me lembro de como nos conhecemos... eu atirei o brinquedo do Snoopy para o rio e ele atirou-se à água para o ir buscar. Eu fui atrás dele e estávamos a ser levados pela corrente até que ela me puxou para a margem. Ela era tão resmungona! Dizia que eu lhe devia um skate novo, porque foi o que ela usou para nos puxar, e ele acabou por ser levado pela corrente. Tinha 10 anos na altura!"

E aí eu emocionei-me. Como, depois da morte dela, é que ele conseguia falar assim, dela, com toda aquela felicidade? Bem, dizem que o amor vence tudo... Nunca se sabe, talvez seja a Rita que está a torcer por ele. De qualquer maneira, continuei o tema, puxando mais memórias engraçadas entre nós:

"E lembraste, quando fomos os três acampar? Quem diria que uma durona como Rita tinha medo de insetos?!"

"Ahahahah pois foi!" 

Ahahahah... espera, para tudo... o André, riu-se?! Isto está mesmo a resultar! Foi mais rápido do que eu pensei. Talvez eu é que estivesse a dramatizar, e não ele.

"E quando ela falava dos animais marinhos...", continuou ele.  "Se havia coisa que ela adorava eram animais, mas os marinhos eram a grande paixão dela. Ela adorava ir à praia, em parte por causa disso...". Ouve uma pequena pausa. Depois, ele voltou a olhar para o relógio, respirou fundo e continuou.

"Também me lembro de quando a pedi em namoro... Não o tinha feito sem ti, mano. Foste tu que me ajudas-te. Foi há três anos, na praia de S. Martinho, ao pôr do sol. Ela adora as cores que o céu ganha no pôr do sol. Ela disse que sim e quase que caímos à água os dois com o abraço que ela me deu. Mas foi a melhor noite da minha vida."

Continuámos a falar durante umas 3 horas, no mínimo. Afinal, éramos os três amigos há treze anos. E não são só meia dúzia de recordações que definem uma amizade de treze anos.

Mais tarde, eu disse que precisava de ir fazer o jantar, e ele ficou a descansar no quarto.

Passado uma hora, chamei-o da cozinha e ele desceu uns minutos depois.

À mesa, ninguém estava a sorrir, e estávamos todos em silêncio, mas o clima não estava tão pesado como ao "almoço".

Depois da refeição silenciosa, fomos para a sala e estivemos a ver as notícias na televisão. Passado algum tempo o André disse que se ia deitar, e eu aproveitei para ir arrumar a cozinha. A mãe dele apareceu para me ajudar, mas eu recambiei-a para a cama, porque via-se a léguas que o que aquela pobre mulher precisava eram umas boas horas de sono. Até porque o dia seguinte seria extremamente difícil... Ia ser o funeral da Rita. Ainda nem tinha dito ao André, e devia tê-lo feito... Mas ele estava a reagir tão bem...

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Depois de um bom banho, desci. Não tinha sono, logo decidi ir ver um pouco de televisão, para ver se o sono chegava mais depressa. Liguei-a, mas quase que lhe tirei o som por completo, pois a dona Rosa e o André já estavam a dormir. Ouvi o André a dar passos lá em cima, mas depois ouvi o chiar do colchão e o silêncio voltou a tomar conta da noite. Decidi ir deitar-me, nem que fosse para eu ficar mais acessível caso o André precisasse de mim.

Tentei adormecer, mas não conseguia. Estava demasiado ansioso pelo dia que estava para vir dali a umas horas. Como é que eu ia dizer ao André que ele se tinha de preparar porque daí a umas horas ía ser o enterro da Rita? Bem, a única coisa que eu tinha a fazer, mais uma vez, era esperar. Era das coisas que mais me frustravam nesta situação toda: ter de esperar, sem poder fazer nada! Sentir-me um inútil! A minha mente gritava enquanto as lágrimas escorriam no silêncio da noite. Mas isto não podia acontecer... Eu tinha de ser forte.

Chamadas às 3 da manhã...Onde histórias criam vida. Descubra agora