Capitalismo Parasitário

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  Capitalismo parasitárioPara além de qualquer dúvida razoável, o recente "tsunami financeiro" demonstrou a milhõesde indivíduos – convencidos, pela miragem da "prosperidade agora e sempre", de que osmercados e bancos capitalistas eram os métodos incontestáveis para a solução dos problemas– que o capitalismo se destaca por criar problemas, e não por solucioná-los.O capitalismo, exatamente como os sistemas de números naturais do famoso teorema deKurt Gödel (embora por razões diversas), não pode ser simultaneamente coerente e completo.1Se é coerente com seus princípios, surgem problemas que não é capaz de enfrentar; gostaria delembrar que a aventura das "hipotecas subprime", vendidas à opinião pública como forma desolucionar o problema dos sem-teto, esta praga que, como todos sabem, o capitalismo produzsistematicamente, acabou, ao contrário, multiplicando o número de pessoas sem casa, com aepidemia de retomada dos imóveis. Se ele tenta resolver esses problemas, não pode fazê-losem cair na incoerência em relação a seus próprios pressupostos fundamentais.Muito antes que Gödel redigisse seu teorema, Rosa Luxemburgo já havia escrito seu estudosobre a "acumulação capitalista", no qual sustentava que esse sistema não pode sobreviversem as economias "não capitalistas": ele só é capaz de avançar seguindo os própriosprincípios enquanto existirem "terras virgens" abertas à expansão e à exploração – embora, aoconquistá-las e explorá-las, ele as prive de sua virgindade pré-capitalista, exaurindo assim asfontes de sua própria alimentação.2Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas,pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não exploradoque lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindoassim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.Escrevendo na época do capitalismo ascendente e da conquista territorial, RosaLuxemburgo não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos de continentesexóticos não eram os únicos "hospedeiros" potenciais, dos quais o capitalismo poderia senutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.Em tempos recentes, assistimos a outra demonstração concreta da "lei de Rosa", ofamigerado af aire das "hipotecas subprime", que estão na origem da atual recessão: oexpediente de fôlego curto, deliberadamente míope, de transformar em devedores indivíduosdesprovidos dos requisitos necessários à concessão de um empréstimo. A única coisa que elesinspiravam era a esperança (um tanto astuta, mas vã, em última análise) de que o aumento dospreços das casas, estimulado por uma demanda artificialmente inflada, pudesse garantir, comoum círculo que se fecha, que os "compradores de primeira viagem" pagassem os jurosregularmente (pelo menos por algum tempo).Hoje, quase um século depois de Rosa Luxemburgo ter divulgado sua intuição, sabemos quea força do capitalismo está na extraordinária engenhosidade com que busca e descobre novasespécies hospedeiras sempre que as espécies anteriormente exploradas se tornam escassas ouse extinguem. E também no oportunismo e na rapidez, dignos de um vírus, com que se adaptaàs idiossincrasias de seus novos pastos.No número de 4 de dezembro de 2008 da New York Books Review, no artigo intitulado "TheCrisis and What to Do About It", George Soros, brilhante analista econômico e praticante dasartes do marketing, apresentava o percurso das aventuras capitalistas como uma sucessão de"bolhas" que, em regra, se expandem muito além de sua capacidade e explodem assim queatingem o limite de resistência.A atual contração do crédito não é um sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustãode mais um pasto. A busca de novas pastagens terá início imediatamente, alimentada, como nopassado, pelo Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos(usando os impostos, em lugar do poder de sedução do mercado, agora abalado etemporariamente fora de operação).Novas "terras virgens" serão encontradas e novos esforços serão feitos para explorá-las,por bem ou por mal, até o momento em que sua capacidade de engordar os lucros dosacionistas e as gratificações dos dirigentes for exaurida. Como sempre – conformeaprendemos no século XX, com uma longa série de descobertas matemáticas, de HenriPoincaré a Edward Lorenz –, um passinho para o lado pode levar ao precipício e acabar emcatástrofe; o mais minúsculo passo à frente pode desencadear inundações e acabar em dilúvio.O anúncio de uma nova "descoberta", de uma ilha ainda não assinalada nos mapas, atraimultidões de aventureiros. Eles chegam num número muito maior que o tamanho e acapacidade do território virgem – são batalhões que, num piscar de olhos, terão de voltar aseus barcos para escapar do desastre iminente, esperando, contra todas as expectativas, que asembarcações ainda estejam lá intactas, no porto.A grande questão é saber quando se esgotará a lista de terras passíveis de "virginizaçãosecundária" e quando as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam, deixarão degarantir um alívio temporário. É bastante improvável que os mercados – dominados comoestão pela mentalidade líquido-moderna do "caçador", que veio substituir a postura pré-moderna do guarda-caça e sólido-moderna do jardineiro – se preocupem em expressar essasquestões. Eles continuarão a viver passando de uma caçada bem-sucedida à outra, enquantoconseguirem desencavar novas chances de adiar a hora da verdade, mesmo que por poucotempo e a qualquer custo.A introdução dos cartões de crédito foi um sinal do que viria a seguir. Foram lançados "nomercado" cerca de 30 anos atrás, com o slogan exaustivo e extremamente sedutor de "Nãoadie a realização do seu desejo". Você deseja alguma coisa, mas não ganha o suficiente paraadquiri-la? Nos velhos tempos, felizmente passados e esquecidos, era preciso adiar asatisfação (e esse adiamento, segundo um dos pais da sociologia moderna, Max Weber, foi oprincípio que tornou possível o advento do capitalismo moderno): apertar o cinto, privar-sede certas alegrias, gastar com prudência e frugalidade, colocar o dinheiro economizado nacaderneta de poupança e ter esperança, com cuidado e paciência, de conseguir juntar osuficiente para transformar os sonhos em realidade.Graças a Deus e à benevolência dos bancos, isso já acabou! Com um cartão de crédito, épossível inverter a ordem dos fatores: desfrute agora e pague depois! Com o cartão de créditovocê está livre para administrar sua satisfação, para obter as coisas quando desejar, nãoquando ganhar o suficiente para obtê-las.Esta era a promessa, só que ela incluía uma cláusula difícil de decifrar, mas fácil deadivinhar, depois de um momento de reflexão: dizia que todo "depois", cedo ou tarde, setransformará em "agora" – os empréstimos terão que ser pagos; e o pagamento dosempréstimos, contraídos para afastar a espera do desejo e atender prontamente as velhasaspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios. Não pensar no "depois"significa, como sempre, acumular problemas.Quem não se preocupa com o futuro, faz isso por sua própria conta e risco. E certamentepagará um preço pesado. Mais cedo do que tarde, descobre-se que o desagradável "adiamentoda satisfação" foi substituído por um curto adiamento da punição – que será realmente terrível– por tanta pressa. Qualquer um pode ter o prazer quando quiser, mas acelerar sua chegadanão torna o gozo desse prazer mais acessível economicamente. Ao fim e ao cabo, a únicacoisa que podemos adiar é o momento em que nos daremos conta dessa triste verdade.Por mais amarga e deletéria que seja, esta não é a única pequena cláusula anexada àpromessa, grafada em letras maiúsculas, do "desfrute agora, pague depois". Para impedir queo efeito dos cartões de crédito e do crédito fácil se reduza a um lucro que o emprestador sórealiza uma vez com cada cliente, a dívida contraída tinha de ser (e realmente foi)transformada numa fonte permanente de lucro.Não pode pagar sua dívida? Em primeiro lugar, nem precisa tentar: a ausência de débitosnão é o estado ideal. Em segundo lugar, não se preocupe: ao contrário dos emprestadoresinsensíveis de antigamente, ansiosos para reaver seu dinheiro em prazos pré-fixados e nãorenováveis, nós, modernos e benevolentes credores, não queremos nosso dinheiro de volta.Longe disso, oferecemos mais créditos para pagar a velha dívida e ainda ficar com algumdinheiro extra (ou seja, alguma dívida extra) a fim de pagar novas alegrias. Somos os bancosque gostam de dizer "sim". Seus bancos amigos. Bancos "que sorriem", como dizia uma desuas mais criativas campanhas publicitárias.O que nenhuma publicidade declarava abertamente, deixando a verdade a cargo das maissinistras premonições dos devedores, era que os bancos credores realmente não queriam queseus devedores pagassem suas dívidas. Se eles pagassem com diligência os seus débitos, nãoseriam mais devedores. E são justamente os débitos (os juros cobrados mensalmente) que oscredores modernos e benevolentes (além de muito engenhosos) resolveram e conseguiramtransformar na principal fonte de lucros constantes. O cliente que paga prontamente odinheiro que pediu emprestado é o pesadelo dos credores.As pessoas que se recusam a gastar um dinheiro que ainda não ganharam, abstendo-se depedi-lo emprestado, não têm utilidade alguma para os emprestadores, assim como as pessoasque (levadas pela prudência ou por uma honra hoje fora de moda) se esforçam para pagar seusdébitos nos prazos estabelecidos. Para garantir seu lucro, assim como o de seus acionistas,bancos e empresas de cartões de crédito contam mais com o "serviço" continuado das dívidasdo que com seu pronto pagamento. Para eles, o "devedor ideal" é aquele que jamais pagaintegralmente suas dívidas.Os indivíduos que têm uma caderneta de poupança e nenhum cartão de crédito são vistoscomo um desafio para as artes do marketing: "terras virgens" clamando pela exploraçãolucrativa. Uma vez cultivadas (ou seja, incluídas no jogo dos empréstimos), não se pode maispermitir que escapem, que entrem "em pousio". Quem quiser quitar inteiramente seus débitosantes do prazo deve pagar pesados encargos.Até a recente crise do crédito, os bancos e as empresas de cartões de crédito se mostravammais que disponíveis a oferecer novos empréstimos aos devedores inadimplentes, para cobriros juros não pagos sobre os débitos anteriores. Uma das maiores empresas de cartões decrédito da Grã-Bretanha causou escândalo (um escândalo de curta duração, podemos estarcertos) quando revelou o jogo, recusando-se a fornecer novos cartões de crédito aos clientesque quitavam inteiramente seus débitos mensais, sem incorrer, portanto, no pagamento deencargos financeiros.Darei apenas alguns exemplos do impacto devastador dessa estratégia. Um jornal dominicalbritânico publicou a história de um homem de 51 anos que tinha uma dívida de 58 mil librascom 14 empresas de cartões de crédito e agências financeiras. Com a súbita alta dos preçosda gasolina, da eletricidade e do aquecimento, o homem não conseguia mais pagar os juros deseus débitos. Mesmo lamentando, a posteriori, a leviandade que o jogou em situação tãodesagradável, o homem se queixava também de quem tinha lhe emprestado o dinheiro: a culpa,dizia ele, era "em parte" deles, por terem tornado tão terrivelmente fácil se endividar.Em outro artigo publicado no mesmo dia, um casal listava os inúmeros cortes que teve defazer no orçamento familiar, além da preocupação com sua jovem filha, já pesadamenteendividada, mas que, cada vez que atingia o teto de gastos de seu cartão de crédito, recebiapropostas de novos empréstimos por parte dos credores. Segundo o casal, os bancos queencorajam os jovens a pegar dinheiro emprestado para compras e, em seguida, a fazer outrosempréstimos ainda maiores para cobrir as dívidas eram corresponsáveis pela lamentávelsituação em que a filha se encontrava.Em outro país, no distante Queensland australiano, Siobhan Healey, hoje com 23 anos,adquiriu seu primeiro cartão de crédito há alguns anos e comemorou aquele dia como omomento de sua libertação: agora finalmente era dona de si mesma, livre para administrar aspróprias finanças, para decidir suas prioridades e dobrar a realidade a seus desejos. Empouco tempo, pediu e obteve um segundo cartão de crédito para cobrir as dívidas contraídascom o primeiro. Mas a tão desejada "liberdade financeira" não demorou a cobrar seu preço,mais precisamente quando ela descobriu que o segundo cartão não era suficiente para pagar osjuros da primeira dívida. Procurou um banco e pediu um empréstimo para cobrir os encargosatrasados dos dois cartões, que, naquela altura, já tinham alcançado o sinistro montante de 26mil dólares australianos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos amigos – um must para a suageração –, pegou um pouco mais de dinheiro para pagar uma viagem ao exterior. Agorapercebeu, afinal, que tinha poucas chances de sair desse beco sozinha, que pedir mais dinheiroemprestado não é o caminho para pagar as próprias dívidas. E comentou, infelizmente com umano ou dois de atraso: "Tive que mudar de todo o meu modo de pensar e aprender a'economizar para comprar'." Procurou a ajuda de um consultor financeiro e de umespecialista em renegociações de dívidas para sair do precipício. Mas será que essas pessoaspoderão ajudá-la a "mudar completamente o seu modo de pensar"? Veremos. Mas é bastanteprovável que o caminho de Siobhan seja mesmo uma escalada.Ben Paris, porta-voz do Debt Mediators Australia, associação dos mediadores de créditoaustralianos, não ficou surpreso nem desconcertado. Comparou a história de Siobhan Healeycom a tentativa de "esvaziar o mar com um balde", mas acrescentou imediatamente que osjovens têm o hábito de "se endividar acima dos próprios recursos". E destacou que o caso dajovem australiana não é nada incomum: "Todo ano falamos com 25 mil jovens em dificuldadesfinanceiras; e só estamos vendo a ponta do iceberg."Resumindo: a atual "contração do crédito" não é resultado do insucesso dos bancos. Aocontrário, é o fruto, plenamente previsível, embora não previsto, de seu extraordináriosucesso. Sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens, mulheres, velhos e jovensnuma raça de devedores. Alcançaram seu objetivo: uma raça de devedores eternos e aautoperpetuação do "estar endividado", à medida que fazer mais dívidas é visto como o únicoinstrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas.Hoje, ingressar nessa condição é mais fácil do que nunca antes na história da humanidade,assim como escapar dessa condição jamais foi tão difícil. Todos os que podiam se transformarem devedores e milhões de outros que não podiam e não deviam ser induzidos a pedirempréstimos já foram fisgados e seduzidos para fazer dívidas.Como em todas as mutações precedentes do capitalismo, desta vez o Estado tambémparticipou da criação de novos pastos a explorar: foi do presidente Clinton a iniciativa deintroduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime. Elas eram garantidas pelo governo, afim de oferecer crédito, para compra da casa própria, a pessoas desprovidas dos meios depagar a dívida assumida, e, portanto, a fim de transformar setores da população até entãoinacessíveis à exploração creditícia em devedores.Mas assim como o desaparecimento de pessoas descalças representa um problema para aindústria de calçados, o desaparecimento de pessoas não endividadas representa um desastrepara a indústria de crédito. E a famosa previsão de Rosa Luxemburgo mostrou-se novamenteverdadeira: mais uma vez, o capitalismo esteve perigosamente perto de um suicídioindesejado, conseguindo exaurir o estoque de novas terras lucrativas.Nos Estados Unidos, o endividamento médio das famílias cresceu algo em torno de 22%nos últimos oito anos – tempos de uma prosperidade que parecia não ter precedente. A somatotal das aquisições com cartões de crédito não ressarcidas cresceu 15%. E a dívida, talvezainda mais perigosa, dos estudantes universitários, futura elite política, econômica e espiritualda nação, dobrou de tamanho. Os estudantes foram obrigados/encorajados a viver a crédito, agastar um dinheiro que, na melhor das hipóteses, só ganhariam muitos anos mais tarde.O adestramento para a arte de "viver em dívida" e de forma permanente foi incluído noscurrículos escolares nacionais. A Grã-Bretanha também chegou a situação bem semelhante.Em agosto de 2008, a inadimplência dos consumidores superou o total do Produto InternoBruto da Grã-Bretanha. As famílias britânicas têm dívidas num valor superior a tudo o quesuas fábricas, fazendas e escritórios produzem. Os outros países europeus não estão emsituação muito diversa. O planeta dos bancos está esgotando as terras virgens e já seapropriou implacavelmente de vastas extensões de terras endemicamente estéreis.No momento em que escrevo estas palavras, a história parece estar bem longe de umaconclusão. No final de 2008, Henry M. Paulson Jr., então secretário do Tesouro dos EstadosUnidos, encarregado da missão de guiar seu país (e, portanto, também o resto do planetaglobalizado) para longe da estagnação financeira, declarou:O programa atual de 250 milhões de dólares para aquisição de capitais é um remédio fortepara nossas instituições financeiras. Mais quantidade de capital permitirá que os bancossuportem as perdas derivadas da desvalorização ou da venda de ativos problemáticos. Euma capitalização mais forte é essencial para incrementar o crédito, elemento vital para arecuperação econômica.3Como podemos ver, nenhum dos pressupostos ou estratégias falenciais responsáveis pelacrise atual foram postos em discussão pelos poderes constituídos. Na cabeça dos que detêm opoder, mais crédito (ou seja, a produção em série de indivíduos endividados) ainda é a chaveda prosperidade econômica. São apenas os "ativos problemáticos", e não as "instituiçõesproblemáticas", que causam problemas – e, para nossa salvação, só precisamos de um"remédio", e não de uma corajosa intervenção cirúrgica.Para não passar vergonha diante das notícias vindas diretamente da cova do leão, o ministroda Economia do Reino Unido, Alistair Darling, no orçamento para 2010 (segundo a sóbriaavaliação do Observer, respeitadíssimo e influente semanário britânico, quatro dias após asdeclarações do ministro norte-americano) decidiu "gastar bilhões a torto e a direito paragarantir a circulação de crédito". Segundo a ponderada opinião do periódico, Darling "esperaque eles [os consumidores britânicos] ignorem as nuvens que se adensam no horizonte egastem, gastem, gastem"4 (seguindo, como poderíamos acrescentar, o exemplo de seu governoe acatando mais uma vez a regra do "compre agora e pague depois").As notícias sobre a morte do capitalismo, como diria Mark Twain, são extremamenteexageradas. E os obituários da fase creditícia da história da acumulação capitalista sãoprematuros!A reação à "contração do crédito", por mais impressionante e revolucionária que possaparecer nas manchetes dos jornais e nas frases de efeito dos políticos, até agora se limitam ao"mais do mesmo", na esperança vã de que as potencialidades desta fase, em termos deretomada dos lucros e do consumo, ainda não estejam totalmente esgotadas: uma tentativa derecapitalizar as empresas emprestadoras e reabilitar seus devedores para o crédito, demodo que o negócio de emprestar e pedir emprestado possa voltar à "normalidade".O Estado assistencial para os ricos (que, ao contrário de seu homônimo para os pobres,jamais teve sua racionalidade questionada e, ainda mais, nunca sofreu tentativas dedesmantelamento) voltou aos salões, deixando as dependências de serviço a que seusescritórios estiveram temporariamente relegados, para evitar comparações desagradáveis. OEstado voltou a exibir e flexionar sua musculatura como não fazia há muito tempo, com essespropósitos: agora, porém, pelo bem da continuidade do próprio jogo que tornou suaflexibilização difícil e até – horror! – insuportável; um jogo que, curiosamente, não toleraEstados musculosos, mas ao mesmo tempo não pode sobreviver sem eles.O que ficou alegremente (e loucamente) esquecido nessa ocasião é que a natureza dosofrimento humano é determinada pelo modo de vida dos homens. As raízes da dor da qualnos lamentamos hoje, assim como as raízes de todos os males sociais, estão profundamenteentranhadas no modo como nos ensinam a viver: em nosso hábito, cultivado com cuidado eagora já bastante arraigado, de correr para os empréstimos cada vez que temos um problema aresolver ou uma dificuldade a superar. Como poucas drogas, viver a crédito cria dependência.Talvez mais ainda que qualquer outra droga e sem dúvida mais que os tranquilizantes à venda.Décadas de generosa administração de uma droga só pode levar ao trauma e ao choquequando ela deixa de estar disponível ou fica difícil de encontrar. Portanto, o que se estápropondo agora é a saída fácil para a desorientação que aflige tanto os toxicodependentesquanto os traficantes: reorganizar o fornecimento (regular, espera-se) da droga. Voltar àqueladependência que até hoje parecia vantajosa para todos, tão eficiente que nem nospreocupávamos com a questão e muito menos com a busca de suas raízes.Chegar às raízes do problema que agora saiu do compartimento top secret para o centro daatenção pública não é uma solução instantânea, mas a única que tem alguma possibilidade dese mostrar adequada à enormidade do problema e de sobreviver aos intensos – mascomparativamente breves – tormentos da desintoxicação.Até agora nada leva a pensar que estamos nos aproximando das raízes do problema. A ondafoi barrada a um passo do abismo por generosas injeções de "dinheiro do contribuinte". Obanco Lloyds TSB começou a pressionar o Tesouro britânico para que destinasse parte dopacote de salvação aos dividendos dos acionistas. E, a despeito da indignação oficial dosporta-vozes do Estado, a instituição de crédito seguiu firme na distribuição de bonificaçõespara aqueles cuja avidez desenfreada havia levado os bancos e seus clientes ao desastre. DosEstados Unidos, chegou a notícia de que 70 bilhões de dólares, cerca de 10% dos subsídiosque as autoridades federais pretendiam injetar no sistema bancário americano, já haviam sidousados em bônus pagos exatamente aos que levaram o sistema à beira da ruína.Por mais imponentes que sejam as medidas que os governos já tomaram, pretendem tomarou dizem que querem tomar, todas elas buscam "recapitalizar" os bancos e deixá-losnovamente em condições de desenvolver suas "atividades normais": em outras palavras, aatividade que é a principal responsável pela crise atual. Se os devedores não tiveramcondições pessoais de pagar os juros sobre a orgia consumista inspirada e amplificada pelosbancos, talvez possam ser induzidos/obrigados a fazê-lo por meio dos impostos que pagam aoEstado.Ainda não começamos a pensar seriamente sobre a sustentabilidade dessa nossa sociedadealimentada pelo consumo e pelo crédito. O "retorno à normalidade" prenuncia um retorno aosmétodos equivocados e sempre potencialmente perigosos. São intenções que preocupam, poissinalizam que nem as pessoas que dirigem as instituições financeiras nem os governoschegaram à raiz do problema em seus diagnósticos (e menos ainda em suas ações).Simon Jenkins – comentarista com excelente capacidade de análise que escreve para T eGuardian – citou Hector Sants, diretor da Autoridade de Serviços Financeiros (FinancialServices Authority, FSA, órgão de controle do setor financeiro do governo britânico), queadmitiu a existência de "modelos de negócios mal-equipados para sobreviver ao estresse, ...um fato que lamentamos". Jenkins observou que "era como um piloto protestando que seuavião estava funcionando muito bem, com exceção dos motores". Mas ele não perde aesperança: continua a pensar que, assim que a cultura da "ganância é bom" for "varrida pelarecente histeria dos lucros do setor financeiro", os "componentes não econômicos daquilo quedefinimos genericamente como boa qualidade de vida assumirão maior importância" – seja emnossa filosofia de vida, seja na estratégia política dos nossos governos.Também essa é a nossa esperança: ainda não chegamos ao ponto de não retorno, ainda hátempo (embora pouco) para refletir e mudar de rumo, ainda podemos virar esse choque e essetrauma a nosso favor e de nosso filhos.Essa espécie de Estado assistencial para os ricos (ou, mais exatamente, a política demobilizar, por intermédio do Estado, os recursos públicos que as empresas capitalistas nãoconseguem convencer o público a lhes entregar diretamente) não é novidade: apenas o alcancee a publicidade que o acompanham assumiram proporções capazes de causar escândalo.Segundo Stephen Sliwinski, ex-colaborador do Cato Institute, já em 2006 o governo federaldos Estados Unidos havia gastado 92 bilhões de dólares para subvencionar os colossos daindústria do país, como a Boeing, a IBM ou a General Motors.Muitos anos atrás, Jürgen Habermas sugeria, num livro intitulado A crise de legitimação docapitalismo tardio, que o Estado é "capitalista" à medida que sua função primária – aliás, suarazão de ser – é a "remercadorização" do capital e do trabalho.5 A substância do capitalismo,recordava Habermas, é o encontro entre capital e trabalho. O objetivo desse encontro é umatransação comercial: o capital adquire o trabalho. Para que a transação seja bem-sucedida, épreciso satisfazer duas condições: o capital deve ser capaz de comprar e o trabalho deve ser"vendável", ou seja, suficientemente atraente para o capital.A principal tarefa (e, portanto, a legitimação) do Estado capitalista é garantir que ambas ascondições se cumpram. O Estado tem, portanto, duas coisas a fazer. Primeiro, subvencionar ocapital caso ele não tenha o dinheiro necessário para adquirir a força produtiva do trabalho.Segundo, garantir que valha a pena comprar o trabalho, isto é, que a mão de obra seja capazde suportar o esforço do trabalho numa fábrica. Portanto, ela deve ser forte, gozar de boasaúde, não estar desnutrida e ter o treinamento necessário para as habilidades e os hábitoscomportamentais indispensáveis ao ofício industrial. Estas são despesas que os aspirantes aempregadores capitalistas dificilmente poderiam enfrentar se tivessem de assumi-las, porqueo custo de contratar trabalhadores se tornaria exorbitante.Habermas escreveu durante o crepúsculo da sociedade sólido-moderna dos produtores einterpretou (erroneamente, como se viu em seguida) a evidente incapacidade dos Estados deabsorver as duas tarefas necessárias para a sobrevivência desta sociedade como "crise delegitimação" do Estado capitalista. Na verdade, o que acontecia era uma transição dasociedade "sólida" de produtores para uma sociedade "líquida" de consumidores. A fonteprimária de acumulação capitalista se transferia da indústria para o mercado de consumo.Para manter vivo o capitalismo, não era mais necessário "remercadorizar" o capital e otrabalho, viabilizando assim a transação de compra e venda deste último: bastavamsubvenções estatais para permitir que o capital vendesse mercadorias e os consumidores ascomprassem. O crédito era o dispositivo mágico para desempenhar (esperava-se) esta duplatarefa. E agora podemos dizer que, na fase líquida da modernidade, o Estado é "capitalista"quando garante a disponibilidade contínua de crédito e a habilitação contínua dosconsumidores para obtê-lo.Quando os elefantes brigam, quem paga o pato é a grama. Na guerra entre dois pretendentesà ditadura, a sorte dos pobres, dos indolentes e dos incapacitados por outros motivos paraatingir as condições de sobrevivência física e social acaba, na prática, quase esquecida. Masapresentar as duas ditaduras como a principal oposição e o principal dilema da sociedadecontemporânea é profundamente equivocado: é fácil tomar as aparências por realidade e asdeclarações por medidas concretas.Antes de mais nada, é preciso sublinhar que os dois elefantes, o Estado e o mercado, podemlutar entre si ocasionalmente, mas a relação normal e comum entre eles, num sistemacapitalista, tem sido de simbiose. Pinochet no Chile, Syngman Rhee na Coreia do Sul, LeeKuan Yew em Singapura, Chiang Kai-Shek em Taiwan, ou os atuais governantes da Chinaforam ou são "ditadores de Estado" em tudo, menos no nome, mas conduziram ou conduzemuma notável expansão e um rápido crescimento da potência dos mercados. Se atualmente ospaíses citados são exemplos do triunfo do mercado, o mérito é todo dessas prolongadas"ditaduras do Estado".É bom lembrar, aliás, que a acumulação inicial de capital conduz invariavelmente a umapolarização sem precedentes e contestada das condições de vida e provoca tensões sociaisexplosivas: para a classe empresarial e mercantil emergente, é necessário que essas tensõessejam suprimidas por um Estado potente, impiedoso e coercivo.A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quandoacontece, é a exceção. Em geral, as políticas do Estado capitalista, "ditatorial" ou"democrático", são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dosmercados; seu efeito principal (e intencional, embora não abertamente declarado) éavalizar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado.O segundo elemento da dupla tarefa de "remercadorização" de que falamos acima, a"remercadorização do trabalho", não representa uma exceção. Por mais fortes que fossem asconsiderações morais que levavam à introdução do Estado assistencial, ele dificilmente terianascido se os donos das fábricas não tivessem percebido que cuidar do "exército industrial dereserva" (manter os reservistas em boa forma caso fossem reconvocados para o serviço ativo)era um bom investimento, potencialmente rentável.Se o Estado assistencial hoje vê seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou édesmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaramou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração dosconsumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários pararesponder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro – não dos tipos deserviço oferecidos pelo Estado assistencial – para se tornarem úteis segundo a concepçãocapitalista de "utilidade". 

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⏰ Última atualização: Mar 10, 2016 ⏰

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