Gabriel devia estar morto, mas não estava. Podia sentir o vento gelado do ar condicionado em sua nuca. Uma luz vermelha, quase imperceptível durante o dia, piscava no teto. Podia ser a casa da Tia Madalena, mas era outubro, e este ar quase congelante ainda não fazia parte da rotina da velha dona de casa que adorava regar as plantas do jardim. Podia ser o consultório do Dr. Schmidt também, se formos pensar na cadeira confortável e reclinada em que ele estava sentado. O vento batia em sua nuca como a lâmina fria de uma faca sendo esfregada na pele. Foi quando ele percebeu que usava uma camisola, o que sugeria que a hipótese do Dr. Schmidt ainda era válida, apesar de já tê-la desconsiderado.
A sala estava escura e seus pulsos, como pode perceber alguns segundos após o efeito tempestade de enxaqueca passar, foi que estava amarrado pelas mãos e pés a esta cadeira.
Durante os minutos que se passaram, Gabriel chegou à conclusão de que ambas as hipóteses eram inválidas e que aquela não era uma situação que fosse terminar de uma maneira fácil. Os vinte e cinco anos trabalhando em investigações lhe lembravam a cada cinco segundos que aquela era uma péssima situação e lembravam que na maioria dos casos em que tentara encontrar uma solução para este tipo de crime, ela não acontecia.
Podia acontecer como o seu caso memorável, em que salvou cinco reféns de um maníaco que já havia matado mais de quinze mulheres e tinha outras doze em sua lista pessoal de vítimas, mas não, ele sabia que, se fosse o que ele achava que fosse, não sairia tão fácil daquele lugar.
Gabriel agora exigia o máximo de esforço de toda sua massa encefálica para tentar descobrir como havia chegado ali. Era algo realmente difícil e agora ele podia entender com mais clareza como as pessoas tinham dificuldade em responder este tipo de pergunta em inquéritos policiais. Qual a última coisa da qual você se lembra? Não sei. Quem foi a última pessoa que você viu? Não sei. Qual a cor da última camisa que você vestiu? Não sei. Era provável que não lembrasse nem mesmo seu sobrenome a essa altura do pesadelo em que se encontrava, misturado com um pânico proeminente que tentava conter com o lado policial da sua mente que dizia: você é um cara durão. Já prendeu um monte destes merdas. Você escapa fácil disso.
Mas, provavelmente, o seu lado policial estava enganado neste ponto, enquanto seu lado lógico e o sentimental, que ainda estava escondido e choramingando pelos cantos, discordavam totalmente disso e chegavam cada vez mais próximos de um desfecho nada interessante para o policial, ou ex-policial, Gabriel, do 17º batalhão de polícia. Haveriam honras em seu funeral, sua esposa e suas duas filhas chorariam sua morte durante cerca de um mês, mas a vida então continuaria, as margaridas do quintal continuariam a florir a cada primavera e o cheiro delas lembraria Susana que Gabriel um dia esteve ali. Mas essa especulação fazia parte do desfecho que o lado sentimental estava planejando lá nos fundos. Ali, de frente para a luzinha vermelha picante e de trás para o ar condicionado no nível máximo, que congelava sua nuca, estava o lado policial, tentando dar conta da situação e dizendo para si mesmo: vai dar tudo certo, vai dar tudo certo, vai dar tudo certo! Ele já havia perdido a conta de quantas pessoas ele já havia tentado convencer com aquelas palavras em alguma ocasião, mas lembrava também que a frequência em que essa frase expressava realmente a verdade era muito menor, pois ele já sabia que o resultado seria ruim.
Aparentemente, não havia nada naquela sala. Pelo menos nada que pudesse ser enxergado além da maldita luzinha vermelha picante. Porque essa porcaria não para de piscar?! Pensava Gabriel, em um momento que o lado comédia conseguiu puxar um espacinho em meio a todo o caos que se instalava. Sua cabeça parecia, neste exato momento, uma sala cheia de pessoas frustradas tentando resolver um problema, onde, de repente, chega o cara sarcástico do grupo e manda todo mundo ir à merda. Sim, Gabriel estava tendo uma pequena reunião interna com seus eus. Se fosse eleito por voto democrático, aquela situação estaria mais para latrocínio que simples sequestro com uma quantia para o resgate, afinal, quem pagaria uma boa quantia de resgate para um quase-aposentado policial? Hm, mesmo que pagassem, seria o bastante para se arriscar neste ponto? Gabriel policial pensava que não.
Tia Madalena teria tirado todos eles da sala para levá-los ao jardim ou então traria uma térmica com café e biscoitos para tentar apaziguar os ânimos no lugar. Não que funcionasse, mas as vezes fazer uma pausa para olhar o problema mais de longe pode ajudar a resolver. O interessante sobre o escuro é que, quando você fica olhando por muito tempo e suas retinas começam finalmente a se acostumar com a luminosidade, você percebe detalhes que antes não haviam, traços que antes eram borrões e começa a enxergar os objetos que se movimentam e são afetados pela pequena, mas proeminente luz vermelha picante no teto. Era, aproximadamente, a cada um segundo e meio, que ela piscava, e neste momento era quando as formas começavam a aparecer e desparecer. Uma porta no lado direito, um armário, uma mesa, uma enorme janela transparente para o nada, que refletia, agora com mais empenho, em pontos específicos do vidro que refletiam em seus olhos.
Tudo ainda parecia uma mescla de cinza com vermelho refletida para qualquer canto a cada um segundo e meio, um segundo e meio. Quantos uns segundos e meio ele levaria para conseguir entender o que estava acontecendo? Será que tinha alguém olhando para ele? A possibilidade de ter sido abandonado em um porão para morrer por inanição foi pautada por Gabriel em pânico, mas foi refutada por Gabriel policial, que achava que nenhum bandido se daria ao trabalho de prendê-lo de tal maneira apenas para deixá-lo morrer ali. Tinha alguma coisa a mais. Mas o quê?
Ele tentava se lembrar de interrogatórios que havia feito com sequestradores, mais em específico com o de João Batista. Um ávido sequestrador de crianças em época escolar. Ele se aproximava delas dizendo que havia perdido seu cachorro e pedia que elas o ajudassem a encontrar. Tobi! Tobi! Cadê você? Elas caiam neste truque, mas o único cachorro que havia ali era o próprio João. Ele as trancava em um quarto de bonecas. Amarrava pés e mãos em uma cadeira, mas deixava a boca livre. O quarto de bonecas tinha isolamento acústico. Não importava o quanto alguém gritasse, ninguém poderia ouvir. E ele gostava de ouvi-las gritar enquanto fazia o que bem entendia. Gabriel considerou que a possibilidade da sala ter isolamento acústico era muito grande. Quase certeza. Quatro entre cinco vozes na sua cabeça concordavam que era mesmo.
(...)
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Gabriel
Romance"Um suspense policial que fará você viajar pelo universo de Gabriel em sua luta por sobrevivência e sua busca por valores morais." Esta é apenas uma prévia do livro de minha autoria, publicado pela Editora Giostri, contendo um trecho do primeiro cap...