Imagina...

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Posso fazer-te um pedido?

Para o que estás a fazer. Vai para um sítio calmo, e relaxa. Respira fundo, pausadamente, e deixa o teu pensamento vaguear até onde quiser. Esquece-te de tudo e todos à tua volta. Só por um momento.

E agora, imagina este cenário:
Tu estás a ir para casa, depois de uma manhã longa e cansativa. O dia não te está a correr bem, e todas aquelas nuvens negras por cima de ti só te fazem sentir ainda pior... Tens frio. Vai começar a chover, e tu não tens guarda-chuva nem casaco. Para além disso, está muito vento, daquele que te despenteia o cabelo e te arranha o rosto, obrigando-te a fechar os olhos.

A única coisa em que consegues pensar é no banho quente que vais tomar quando chegares a casa, e no almoço que daqui a pouco tempo vais ter em cima da mesa. Por isso, arriscas mesmo ir por uma rua pela qual nunca passaste antes, apenas sabendo, graças ao teu sentido de orientação, que por ela chegas mais depressa a casa.

A rua parece-te completamente normal. Está deserta, como todas as outras neste dia de temporal, e tem vivendas de ambos os lados. Quase que a atravessavas sem lhe prestar a mínima atenção... Mas... Tu viste-a! Tu sabes que sim. Só reparaste nela pelo canto do olho, mas notaste... E ela chamou o teu olhar, com uma voz doce que ecoa na tua cabeça, uma voz que diz 'Toma conta de mim...'.

É apenas uma flor. Uma pequena flor de campo, que crescera rebeldemente entre duas lajes do passeio. Frágil, simples, com as pétalas a serem arrancadas pelo vento. E tu não sabes o que te leva a fazê-lo, mas tu paras de andar e colocas as tuas mãos em redor dela, protegendo-a do vento. E ficas. Ficas ali até a tempestade acalmar, até o vento parar. E só então vais para casa, sem nunca tirar aquela flor da tua mente.

No dia seguinte, quando sais de casa para ir aos teus compromissos, dás por ti a pisar as mesmas pedras da manhã anterior. O teu caminho habitual nunca incluiu aquela rua, mas há algo nela que te atrai. E, quando passas pela flor, vês que as pontas das suas pétalas estão ligeiramente escuras, acastanhadas, como a pedir água. E pegas na garrafa de água que tens dentro da tua mochila e rega-la, com cuidado para não lhe dares água de mais.

Quando, ao fim do dia, voltas a ir para casa (mais uma vez por aquela rua), vês que as pétalas estão mais belas e esticadas, e apercebes-te que ela já não devia beber há muito tempo. Sentes-te bem, feliz por teres sido tu a proporcionar-lhe aquela sensação de alívio, de paz.

Passar por ela todos os dias tornou-se a tua rotina. Sentes que, se alguma vez não fores lá, estás a deixar a flor desprotegida e vulnerável a todos os perigos. Quando chega o fim de semana, saltas da cama de manhã cedo e corres para lá. Apercebes-te, então, de que a flor já não está fraca nem doente, mas sim forte e regenerada. E parece-te, assim de repente, a flor mais bonita do mundo.

Não é que seja. Tens a perfeita noção de que há flores mesmo belas que tu nunca viste, algures num país tropical, perto de uma praia ou no seio de uma floresta. Mas esta cria em ti um efeito quase mágico, algo de inexplicavelmente incompreensível, místico, fantástico, teu. Esta é a tua flor. Se ela está aqui, é por causa de ti. Foste tu que pegaste nela quando ela fraquejou. Ela só existe porque tu assim quiseste.

E deitas-te no chão, a cabeça apoiada sobre os teus braços cruzados, e observas as nuvens com um sorriso idiota estampado no rosto. E falas com a flor, contas-lhe a tua vida, mesmo que ultimamente a tua vida tenha sido só cuidar dela.

Sentes-te confortável, mesmo ali, no chão duro. Adormeces em paz. E acordas feliz.

Passas quase todo o teu tempo ali. Só vais a casa comer e dormir (porque dormir mais vezes ao relento não te faria bem, mesmo que queiras acreditar que sim), e desmarcas compromissos e trabalhos só para ires para aquele sítio. Começas a deixar de ter vida, dinheiro, comida, água... Já te custa pagar a tua própria casa. Mas não te importas, porque estás com a tua flor. E por isso estás feliz...

O tempo passa, e a fome aperta. O teu corpo cansado pede que cuides dele. As pálpebras começam a fechar, e o teu estômago ressoa, a tua boca está seca. Mas isso não importa, porque manténs em ti, firme, a convicção de que estás bem.

Mas a dúvida assalta-te. Como uma lança no teu coração, um dardo que te despedaça, uma ideia monstruosa começa a ganhar forma na tua cabeça: a flor, a tua flor, aquela que mais amas, é a culpada da tua situação atual. Se não fosse aquela flor, tu não estarias assim. Tinhas uma casa. Uma cama. Comida. Dinheiro. Amigos. Uma vida. E trocaste tudo isso por uma flor. Uma flor que não te pode dar nada.

Num acesso de fúria, estendes a tua mão até ao caule verde e fino, e enrolas os teus dedos à sua volta. É tão fácil. É tão simples arrancá-la, basta um pequeno movimento da mão para acabares com todo o teu sofrimento.

Mas, quando chega o momento, não és capaz. Não és capaz de matar algo tão belo, tão frágil, tão puro. O mais belo, frágil e puro que já viste. O mais teu. Tu investiste uma parte tão grande de ti naquela flor, que não a consegues destruir, por mais que tentes. É superior a ti.

E tu medes. Medes as consequências de cada possibilidade, pões as duas alternativas nos pratos da balança: podes arrancá-la e seguir a tua vida, ou podes deixá-la ali e ficar. Ou até nem precisas de ficar, mas simplesmente podes ir vê-la de vez em quando.

O que é que vais fazer agora? Precisas de decidir. Tens de escolher uma de duas hipóteses...

E eu juro. Juro mesmo por tudo, que se arrancares a porra da flor, eu nunca mais te vou dirigir a palavra na vida.

Imagina...Where stories live. Discover now