Capítulo 1

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Além do meu pai, moram cinco pessoas na minha casa - e nenhum de nós soube da morte dele até de manhã cedo. Aquele interessante fato de que, quando alguém que você ama morre, você sente na alma, é mentira. Os cinco de nós dormimos muito bem, em nossas camas quentes, enquanto a chuva desmoronava lá fora e um cadáver se contorcia no asfalto. Lembro de sair de casa para meu primeiro compromisso do dia e só perceber vagamente a ausência dele. Lembro que notei que ele não estava lá porque senti a falta do beijo na testa que ele me dava toda manhã, mas que isso não me impediu de pegar meu guarda-chuva, minha mochila e meu casaco e enfrentar o ar frio.

Eu dormira muito mal na noite anterior - na verdade, não dormira praticamente nada. Passara a madrugada lendo Augusto dos Anjos, o que é bem irônico, agora que venho pensar no caso. De manhã, eu geralmente pedia para meu primo me levar de carro - especialmente no mês de setembro, em que os dias eram permanentemente úmidos e molhados e frios e me davam uma vontade de morrer -, mas no dia em questão eu estava com tanto sono que achei que uma caminhada poderia me ajudar a não dormir em cima das teclas do piano.

Todo mundo soube antes de mim. Essa é a maior injustiça. Eu amava ele mais que qualquer pessoa.

Estava cedo. Foi a primeira impressão que eu tive ao trancar a porta de minha casa atrás de mim. Cedo demais para fazer qualquer coisa além de dormir. Continuei andando. Não tive a sensação de que algo ruim aconteceria, não houve nenhum aperto em meu coração. Sentira uma presença ruim em meu quarto na noite anterior, mas isso era muito comum em minha casa, principalmente comigo. Considerando tudo de que me lembro, nenhuma indicação de que a pessoa que eu mais amava no mundo havia morrido há meras 4 horas atrás.

Suponho que é assim que a morte acontece.

Era uma longa caminhada até a casa de Gregório, meu aluno favorito e o único ao qual eu concedia o direito de pedir por uma aula que ocorresse antes das 8 horas da manhã. Eu pensava em muitas coisas enquanto tremia embaixo da chuva gelada e fina. Pensava nos poemas que lera, nas escalas que havia deixado como tarefa de casa para Gregório na semana anterior, na notícia do jornal de ontem. Pensava em como estava com sono, um sono absurdo, e um cansaço em todos os ossos. Desejei ter esperado para que Santiago me deixasse de carro - poderia ter evitado a chuva, chegado um pouco mais tarde.

Ainda consegui chegar à casa em questão sem danificar minhas partituras. Demoraram um pouco para atender a porta, e entrei na sala o mais rápido que consegui, suspirando com alívio devido ao ambiente quente e seco.

Eu conheço bem o local, por mais motivos que um. É uma residência antiga, mas bem cuidada. Sempre quente, sempre confortável, dando a sensação de aconchego e a impressão de que o mundo inteiro pode ser trancado do lado de fora de uma porta. Para um visitante de primeira vez.

Eu nunca soube quem abre a porta. Quem quer que seja, o faz rápida e silenciosamente e some no segundo após destrancar a fechadura, porque eu nunca vi nem sombra desse ser misterioso, e já fui lá várias e várias vezes, em horários e por motivos os mais variados.

Meus passos eram surdos e abafados no carpete que sabia ser macio. Nem sinal dos pais. Nunca sinal dos pais. Eram um fenômeno invisível, mencionado mas nunca visto. Acho que um dia cruzei com a mãe no supermercado; uma coisinha bonita, bem-arrumada, postura e aura geral tão diferente dos filhos que ainda hoje não tenho certeza se era ela mesmo. Do pai, só ouço histórias.

Cheguei na frente da porta da sala de música (sim, esse é o tipo de casa que possui um cômodo chamado sala de música). A pequena imagem de São Judas Tadeu continuava pendurada na maçaneta, como está até hoje e como tem estado desde a primeira vez que estive nessa mesma posição, na frente dessa mesma porta. O santo das causas perdidas. Faço o sinal da cruz, bato na porta e entro.

Por isso eu te amavaOnde histórias criam vida. Descubra agora