Alípio e a Cabeça

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Alípio desatarraxou a cabeça e depositou-a com todo cuidado sobre o tampo verde da mesa, entre um punhado de migalhas de pão e uma mancha seca de café, plastificada e grudenta. A cabeça ficou olhando para ele com uma expressão de surpresa nos olhos castanhos, lacrimejantes. Um ar de dignidade ofendida. Eu confiava em você, e você me traiu.

Não fez conta da cabeça. Chacoalhou os ombros para ela, deu as costas e foi embora.

A cabeça de Alípio ficou ali, sem nada para fazer exceto olhar seu próprio reflexo na porta da geladeira, entre um ímã de ursinho e um anjinho de gesso, pouco mais que um vulto indefinido na superfície esmaltada de branco. Se ao menos tivesse a televisão.

Alípio, por sua vez, não se deu por achado. Com a confiança que anos de hábito tinham lhe trazido, tateou o caminho até a porta do apartamento e saiu. Nem se preocupou em acender a luz do corredor, não tinha olhos para ver. Seus pés procuraram os degraus por si próprios, queria descer as escadas, não tinha paciência para ir de elevador. O porteiro cumprimentou-o com alegria profissional, dia seu Alípio, respondeu com um aceno educado. Fazia sol. Alípio sentia o calor da tarde se derramando sobre sua pele e exultou com a sensação de liberdade que aquilo lhe trazia.

A cabeça de Alípio pensava.

Alípio vagueou a esmo pelas ruas da cidade até o dia terminar. Não sabia direito onde ir, a parte dele capaz de decidir essas coisas tinha ficado para trás no apartamento. Não se importou, porque a parte dele capaz de se importar também tinha ficado para trás. Deixou-se levar, puro acaso objetivo, à espera de que o próprio caminho o conduzisse a algum lugar. Desviava das pessoas por instinto, respondia por gestos se lhe falavam, fazia que não com o dedo aos meninos que distribuíam folhetos. Teria chorado de felicidade, mas parte dessa felicidade nascia bem do não poder chorar.

A cabeça de Alípio lembrava.

A noite caiu sobre Alípio com um arrefecimento da temperatura, um vento fresco soprando em seus braços, uma carícia leve na fronte que não tinha. As buzinas dos carros impacientavam-se por chegar em casa. Hordas de estudantes vinham da escola, hordas de estudantes iam para a escola. Um garotinho que a mãe levava pela mão olhou Alípio com espanto, o que fazia aquele homem sem cabeça, mas a mulher lhe deu um safanão e nem notou. Alípio suspirou aliviado, a intenção lhe parou na garganta

A cabeça de Alípio chorava.

Alípio entrou num puteiro, grato por não ter narinas que sentissem o fedor de mijo, olhos que vissem as paredes encardidas, o chão emporcalhado. Estava no centro da cidade. Há pouco menos de duzentos metros, o arcebispo de São Paulo celebrava uma missa na catedral da Sé. Ninguém ali fazia caso, as prostitutas anêmicas ou gordas, o barman raquítico que mal merecia o nome, uns clientes minguados que deviam estar vindo direto da obra para a zona. Alípio se aproximou de uma das putas, não tinha como saber qual. Era uma ruiva de pele sardenta, tão magra que se deixava absorver na própria sombra, os grandes olhos verdes que noutra época e lugar teriam sido bonitos, ali apenas empastados. Não que isso fizesse diferença para Alípio. Tomou a mulher pelo braço, mas deixou que ela o levasse. Afinal, era a puta quem sabia onde ir.

A cabeça de Alípio imaginava.

Era um quarto pequeno, abafado. Devia estar escuro. Alípio despiu a prostituta, seus dedos brincando com os mamilos, apertando os seios, dedilhando a pentelheira seca. A prostituta se ajoelhou no piso do quarto, abriu o zíper da calça de Alípio e brincou em seu pau com a língua. Alípio deitou a prostituta sobre o colchão encardido, abriu as pernas dela e meteu o pau duro com estocadas curtas. A prostituta virou de costas e ofereceu a bunda para que Alípio a comesse. Alípio comeu a bunda da prostituta.

A cabeça de Alípio se impacientava.

Alípio chegou em casa já madrugada alta. Não tinha como sorrir e era uma pena. Estava cansado, a sensação de cansaço se diluía por entre a malha dos nervos, sem nenhum cérebro ao qual se dirigir. Nem se preocupou em acender a luz. Entrou na cozinha e atarraxou a cabeça com cuidado no pescoço. Deu uma olhada em volta, conferiu se tudo estivera normal em sua ausência. Foi para a cama.

A cabeça de Alípio dormia.

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⏰ Última atualização: Apr 03, 2016 ⏰

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