VII
Quando o carro buzinou na frente do portão da casa do dono daquelas terras, sendo recepcionado por cães que ladravam agressivamente, um rapaz desceu. O patrão não o reconheceu.
Trajava terno. Tinha carro novo. Dentes brancos. Barba bem feita. Cabelo bem penteado. Confiante, não deixava os latidos dos cães o intimidarem. Tinha um sorriso que mostrava que nada lhe intimidaria e uns olhos que desafiavam quem quer que fosse a tentar.
O dono das terras, o patrão de outros tempos, desceu os três degraus que o separavam do pátio, algo desconfiado, e se aproximou do estranho:
- Bom dia, tenho a honra de falar com quem?
- Com Augusto Moreira, moço. Do que se trata?
- Lamento incomodar, seu Moreira. Tô viajando a negócios. E meu carro deu um defeito bem passando por aqui. Achei que não valia a pena perder tempo perguntando na vila e vim direto na casa de onde me pareceu ter gente instruída, enquanto o possante ainda rodava. Tem algum mecânico nas redondezas? O senhor tem telefone pra eu chamar um se não tiver?
O patrão olhou para ele, com uma sombra de reconhecimento.
- Entre. Vamos ver o que se pode fazer. O senhor viaja a negócios, é? E quais são seus negócios?
- Comércio e representações. Gerencio a venda de muita coisa. O senhor tem uma bela propriedade por aí. O que ela produz, se posso saber?
Dorotéia o reconheceu. Ele viu em seus olhos. E também viu medo.
Durante o jantar, a moça o olhou apreensiva várias vezes. Ela agora não era, é claro, uma mocinha. Era uma senhora casada. O marido estava visitando o sogro, na companhia dela. Ele ouviu com indiferença o sujeito dizer o que fazia da vida. Parece um tipo apagado, sem vida, apesar de cordial.
Seu Moreira havia dado a bênção para o casamento se realizar, evidentemente, mas dava pra sentir que o que ele considerara uma boa ideia no passado não era nem um pouco satisfatório hoje. A decepção com o genro era profunda.
Dava para quase adivinhar o que acontecera. De todas as opções disponíveis, Dorotéia escolhera o mais submisso, o mais sem fibra, o com menos chance de enfrentar ela e o pai.
Um cachorrinho.
Em poucas horas de conversa, deu pra notar que Moreira gostava bastante dele. E olhava com tanta desaprovação para o genro que o outro, por mim, acabou pedindo licença para se retirar, pedindo gentilmente para que a esposa o acompanhasse.
Oh, a diferença que um terno, um carro e uma conversinha mole aprendida na alta roda não fazem!
Amaro se levantou, findando a conversa:
- O senhor me desculpe, mas tenho que lhe dizer não. Infelizmente, o compromisso que me aguarda amanhã é daqueles que fazem ou destroem a reputação de um homem e tenho que me por em viagem, mesmo tarde da noite. Obrigado pelo jantar e pela companhia. Tenho que lhe dar boa noite, seu Moreira.
- Se o amigo insiste, assim seja. Mas lembre de passar aqui na volta. Vamos conversar sobre sua casa de comércio. O assunto me interessa. Não ando especialmente satisfeito com o sujeito que administra essas coisas pra mim no presente. Me deixa te acompanhar até lá fora.
No caminho, passaram pela varanda.
Lá estavam Doroteia e o traste com que se casara.
Mas o que era aquilo?
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OS OLHOS E A ESCURIDÃO
HorrorNum Brasil arcaico, um jovem e amargurado camponês busca uma maneira de vencer na vida. Com o auxílio de poderosas e traiçoeiras forças sobrenaturais.