IA
(noções de auto-ajuda)
(sugestões de um mago alquimista: "o fio da espada" ou "a
lenda pessoal" ou "o pulo no
escuro", ou "o alvo", ou...)
"Ajuda-te e o céu te ajudará! – disse, enfezado, o profeta."
Foi só depois de a companhia telefônica ter instalado a antena receptora no ponto mais alto do morro que os
rapazes descobriram o pico maneiro, ou, como eles o apelidaram - o cocuruto. Os homens vieram em uniformes, limparam o terreno, furaram uns buracos, fizeram uma funda-
ção e um piso de concreto, construíram o que chamaram de
casa de força – um cômodo de tamanho médio com uma
porta de ferro e uma série de pequenas janelas gradeadas,
também de ferro e, depois – BAM! – como que da noite pro
dia, levantaram ao lado a enorme antena, cheia de penduricalhos. Mas, antes de irem embora, instalaram a rede elétrica, ligaram a antena na rede, levantaram e rebocaram com
massa muito forte um alto e reforçado muro de lajotas em
volta da estrutura e da casa, encimado por arame farpado e
uma cerca eletrificada, porque, como afirmaram, se não
construíssem e eletrificassem o muro, a antena logo começaria a sumir do morro e a aparecer, aos pedaços, nas mãos
dos compradores de ferro velho, de sucata; então, circundaram o muro com um largo passeio de cimento, pintaram de
branco a casa de força e o muro, de cinza-escuro a porta e as
janelinhas, e se mandaram.
..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .....
Como ratos atraídos por um monte de entulhos, os
rapazes – "a turma", como eles próprios se denominavam –,
não demoraram a dar pelo local da antena. Era um lugar
aprazível, limpo, e havia toda a ventilação e todo o sossego
de um alto de morro sem moradores. Bastava subir uns tre-
zentos metros de trilhas, pisando em inúmeros buracos escavados pelas águas das chuvas, tropeçando em touceiras
ressecadas de capim, - enfim era preciso andar em um terreno muito irregular,- mas tudo valia a pena se o ganho fosse
sair de perto das comadres faladeiras, dos velhos futriqueiros, que habitavam os barracos do rabicho de terra nua.
"Rabicho" não era força de expressão; era mesmo o apelido
que os moradores haviam dado ao prolongamento de terra
morro acima, ao longo do qual eles, após irem abrindo aos
poucos uma trilha sinuosa, ergueram os barracos. A rua terminava, de fato, a uns tantos metros de onde principiara a
invasão de barracos. Havia um campo de futebol cercado
por um alambrado e, ao lado, o temor de todos os moradores
do morro e de todos os maus elementos da cidade: o presí-
dio novo, grande, ainda cheirando a tinta recente, cor cerâ-
mica, chamado pejorativamente de "caixotão." A rua terminava ali, logo no final do campo, depois, vinha a ruela: o
"Rabicho."
Não se esqueça: o telefone celular! Quando algum
deles ia telefonar, tratar de "negócios" perto dos barracos, as
mulheres esticavam os pescoços e se calavam, pra tentar
pescar o assunto.
"Não temos pra onde ir; aqui é melhor do que lugar nenhum, melhor do que morar nas ruas. Podem chamar
do que quiserem – é nosso!"
..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .....
"Sim, senhor, este foi meu presente de aniversá-
rio. Posso dizer que foi!" – Técio disse, ao se esparramar pela primeira vez junto ao muro, se sentando encostado nele,
enquanto esticava as pernas compridas para tão longe quanto possível – "Acabo de fazer mais um ano, entrando na
maioridade, e eles me arrumam este lugar maneiro!" Os outros rapazes da turma o acompanhavam. Corpos ao sol da
manhã, silêncio e sossego absolutos.
Quem observasse o membro mais velho do grupo,
Técio - (Tetéu para os mais chegados), pela primeira vez, –
um tanto alto (um metro e setenta e cinco), forte (mas não
gordo), braços grossos, moreno claro, quase branco, rosto
anguloso comprido, costeletas largas e longas, quase até o
queixo, cabelo preto seco cortado muito rente, um pequeno
topete dando uma volta suave para trás no alto da testa larga, dentes compridos e amarelados, dois largos brincos prateados (bijuterias) enfiados em cada orelha, uma enorme tatuagem de dragão dando a volta no antebraço esquerdo, voz
grossa, poderosa, palavreado carregado de gírias, – pensaria
o óbvio: bandido! Mas ele ainda não era um bandido. Era
aquilo que os detetives e policiais de todas as cidades, grandes, médias e pequenas, chamam de "ladrãozinho semvergonha": arrombador de carros, surrupiador de telefones
celulares, de bolsas femininas, pequeno traficante de drogas,
avião, vaposeiro – um vagabundo. Mas Técio estava preocupado. Ele havia feito dezoito anos havia pouco tempo. Até
então, estivera protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, documento que ele e os colegas chamavam debochadamente de "a Carta". Quando era pego pela polícia,
achava graça, pois sabia que nem podia ir até à delegacia ou
à cadeia. Nem ele nem nenhum outro da turma, que eram
todos quase da mesma idade. A "carta" não permitia que ficassem detidos. Por isso, até então não estivera nem aí:
"Foda-se o mundo!" Depois, a barraca caiu.
"Sim, senhor, é muito bom aqui, é ótimo, a brisa
batendo no corpo da gente, na cara da gente, balançando os
pelinhos do corpo, e o sol maneiro!" – Técio disse, enquanto
os outros rapazes, alguns ainda nem tão rapazes – garotos -,
se esparramavam sobre o passeio, se encostando à parede da
casa de força. - "e deitar na grama também é um programa
pra lá de bom!"
Além da brisa que estava satisfazendo tanto os caras, havia também a visão da cidade, de vários pontos da cidade, onde eles podiam agir: arrombar carros, roubar CD‟s,
pegar telefones celulares, bolsas, relógios das pessoas, principalmente das moças desprotegidas. Viam-se os telhados
das casas, o pátio da igreja, "quando houver movimento de
carros, pode-se pegar um binóculo e considerar as „possibilidades‟, e, sendo promissoras, pode-se dar uma corrida lá e
ver se sai alguma coisa, algum troco", os morros sumindo
ao longe, e via-se, também, o grande telhado de cor cerâmica, do único lugar temido pela galera, o "caixotão."
"Outra vantagem é que não precisamos ficar tolerando as piadinhas dos moradores dos barracos ao nos verem reunidos lá perto deles nas nossas conversas, com nossos baseados. .... E, se a polícia vier aqui buscar algum de
nós, há como sair fora, tem muito mato nas redondezas,
muitas trilhas nos morros e entre a vegetação. Moço, que
lugar! A idéia da telefônica foi uma achado!"
Não demorou para que os moços descobrissem
que o cocuruto, à noite, era pra lá de maneiro. Ninguém podia ser visto e, se conversassem em voz mais baixa, mesmo
dos barracos ninguém ouviria.
A transição está obscura.
"He, he! Eu fico olhando aqui no chão, bicho, e
fico pensando: até as formigas carregam essas folhas dia e
noite, no trabalho, e nós, aqui, sentados ou deitados, sem fazer nada. Se não aparecer nenhum trambique, é só vagabundagem, só descanso! He, he!"
"Não só as formigas, neném. As abelhas também
ficam na dureza o dia inteiro. Olha elas lá, pousando nas flores. Zumbem o dia todo!"
"E elas parecem gostar... nunca reclamam!"
"Pra mim, o mais batalhador é o joão-de-barro.
Vai gostar, moço – e ainda canta! E nem gasta o bico!"
"Nem sei como esses bichos agüentam!"
Os rapazes da „turma‟ riam; estavam fazendo gra-
ça. Eles faziam isso vez ou outra; os insetos e pássaros no
trabalho, ou os empregados do condomínio do outro lado da
cidade atravessando o morro, de manhã ou à tardinha, e eles
rindo. Alguns dos empregados do condomínio carregavam,
além das marmitas, livros e cadernos. Iam pras aulas após o
batente. Os caras gritavam: "JÁ VAI, HEIN?" Mas a „turma‟ tinha outro sistema de valores. Técio, quando o tema
era estudo ou trabalho, era o mais enfático:
"Estudar!? Eu acho é graça! Aprendi mal e mal a
ler alguma coisa na escola – e não foi muita coisa, não, senhor! - depois saí. Só fui enquanto era criança, porque, se
não fosse, a família perdia a esmola do governo. Então, minha mãe me empurrava pra aula. Mas as gororobas que os
professores falavam, aquelas merdas todas, não me interessavam nem um pouquinho. E livro não é a minha praia! De
escolas não passo nem na porta! Trabalhar!? Eu não, cara,
eu não tenho saco! Só de pensar eu fico é puto! Não vou ficar fazendo papel de palhaço pros outros! Da turma ninguém trabalha. E, também, não há como cumprir horários
com a vida que a gente leva. A gente nem sabe o que vai fazer à noite. E nem sabe ao certo onde vai estar na manhã seguinte. Imagine se alguém tem de ir buscar um bagulho em
algum sítio durante a noite. Se tem uma entrega pra fazer!
Se aparece algum outro tipo de parada. Não há como chegar
no serviço com hora marcada. Com cartão de ponto. Ou
com encarregado chato tomando conta. A gente faz muita
bagunça também. Sabe como é... fica por aí, pelas madrugadas. E... trabalhar, cara?! Ficar como uns sujeitos ficam: trabalhando, trabalhando, enriquecendo os outros e vivendo na
maior merda?! Eu não! Quem quiser entrar nessa pode entrar! Pode ir! Eu tô fora! Mas tem muita gente mais velha
aqui no Rabicho que trabalha. São pessoas de outras épocas,
com outras cabeças".
Técio não gostava destas coisas - de acordo com
ele, „comuns‟–, ações que muita gente praticava e, ele pensava, não levavam ninguém a lugar nenhum, não levavam a
nada. Só os patrões é que levavam vantagem.
"Só exploração! Chateação! Tolerar preconceitos?! Eu não! Vão pro inferno! Os caras ficam é dando o
tempo deles de graça pros outros, pros patrões. E ainda têm
de tolerar um monte de abusos. Como aquele operário, um
pintor de paredes, que mora num barraco, no Rabicho logo
ali embaixo. Gerson o nome dele. Vive borrado de tinta e de
pó de massa e anda de sandálias de borracha. Tá sempre
correndo atrás de alguma coisa pra fazer. Trabalha, trabalha,
mas mora num barraco. Barraquinho mesmo! Amigo meu.
Conversa comigo vez ou outra, se senta comigo pra trocar
idéias. Brinca comigo. Me acha vagabundo e diz: "Você pra
mim é doido!" Ele, às vezes, atravessa o morro, o cocuruto,
pra ir trabalhar no condomínio grande ali do outro lado da
cidade. Quando chamam ele pra trabalhar lá. Passa por aqui.Sempre passou. E pára pra trocar idéias. Gente boa. Ele nãojoga no meu time, é careta, muito careta, mas eu gosto dele.E ele me conta as coisas. O que as pessoas fazem com ele,com os trabalhadores, nas casas e nas obras. Mesmo nas ru-as. Os engenheiros e os encarregados. Os patrões e as patroas. As mulheres parecendo galinhas chocas. Às vezes, são asempregadas é que enchem o saco, as domésticas: „Não quero que entrem na cozinha; acabei de lavar e enxugar o chãoagora mesmo!‟ „Não precisa pedir café; quando estiverpronto, eu mesma entrego lá fora. Eu vou levar lá!‟ Isso,quando ganham café ou qualquer outra coisa! Se estiver trabalhando dentro de casa, então... sai da frente! É só: „cuidado pra não sujar os meus móveis! Sujeito porco, sô!, é tintapra tudo enquanto é lado! Não vá arranhar o meu sinteco!‟ Ealgumas mulheres parecem que ficam menstruadas trinta dias por mês; um paquete sem fim. É só encheção de saco!Começam de manhã: "Que dia você vai terminar meu servi-ço? Que moleza, moço!" E o leilão que algumas pessoas fazem com os serviços que elas têm pra ser feitos!? Pegampreços de vários oficiais e, depois, ficam dizendo: "fulanofaz por tanto, se você fizer por menos, eu te dou o serviço."E os caras, os operários, vão jogando os preços pra baixo,até que um passa-fome faz o serviço por um preço irrisório.E os patrões ainda dizem: "ninguém paga esses caras direito, por que eu é que vou pagar?! dando pra comprar um pacote de arroz e uma lata de óleo já tá muito bom! O importante é não deixar a família passando fome, senão a moralcai! Aí, a sociedade critica!" Pior ainda quando ele trabalhana equipe de algum mestre de obras e o cara trata diretamente o preço da mão-de-obra dos operários com o dono do serviço. O sujeito trata um preço e rouba uma percentagemgrande do salário de cada um dos caras. E eles lá – fodidos!E quando acontece de ele trabalhar em condomínios fechados ou prédios de muitos apartamentos onde as madamescostumam fazer ginástica nas manhãs!? Os porteiros vão logo avisando: „as donas fazem ginástica de manhã nas quadras de esporte ou no salão de festas e elas não gostam queos empregados olhem pro lado delas, não!‟ O cara fica puto!Umas mulheres pra lá de esquisitas: coroas, branquelas, barrigudas, bundudas; os peitos caídos, coxas e pernas lotadasde varizes e o rabo cheio de celulite! Tudo comida de gato:muchiba! Tudo boi do cu branco! Tudo terceira idade! E eleconta como as esposas, as amantes dos caras, dos operários,falam com eles quando eles chegam mortos de cansados emcasa. Dizem que, se „esses bostas‟ não derem um jeito deconseguir dinheiro suficiente pra dar conforto pras famíliasdeles, fazer moradias decentes, dar alimentação e vestimentas de boa qualidade, elas vão sair pra rua, arranjar outroshomens, dar a xoxota ou mesmo o rabo pra eles, chupar atéo pau deles se for preciso, pra aumentar a renda da família!Elas nem sabem das dificuldades que os caras enfrentam praconseguir algum tipo de serviço, algum biscate! E algumasainda reclamam com as amigas que os maridos são bundasmoles, frouxos na cama. Que eles ficam esmolando o quefazer, esmurrando portas das pessoas que têm algum servi-ço, fazem o serviço – se o conseguem! -, ganham uma merda de salário – isso, quando recebem! - se matam de trabalhar, chegam em casa esfalfados, mortos em pé, e na hora dobom – nada! O pau não sobe, ou só fica de meia engorda, eé aquele baixo astral – um saco! E muitos deles chegammortos de bêbados, putos da vida, e descarregam toda a irasobre a família. E é por isso que algumas das mulheres doscaras dão mesmo pra outros homens. „Sem um peru eu nãofico!‟ – afirmam."A mãe de Técio tinha ficado sem o peru do marido (na verdade, ela dizia que, logo após se casar, ficara semmarido; "aquele homem agarrou na cachaça e era só isso, otempo inteiro: cachaça, cachaça, cachaça!"), mas não sem operu de outros homens. Teve dois filhos. O pai de Técio,trabalhador braçal, pau pra toda obra, preferencialmente desempregado (de quem o filho herdara a aversão ao batente),não era diferente de muitos homens do Rabicho: os começosde madrugada o encontravam nos botecos, e passava mesmodias sem aparecer. Assim, no dia em que ele, de cara empapuçada, olhos inchados e boca babenta, disse pra esposa:"Você fica por aí com as crianças que eu vou pra capitaltentar a vida, melhorar de situação. Mas vocês não vão ficarem dificuldades, sempre vou mandar algum dinheiro, alguma coisa, pra vocês", não foi novidade. Ela achou graça, riu,e perguntou: "É mesmo?! E o que você tá esperando?! Nãofoi ainda não, cara?" Ele não dava confiança pra famíliamesmo! E assim aconteceu; ele sumiu, e eles, os filhos maisa mulher, nunca mais tiveram notícias suas e menos aindaviram a cor de seu dinheiro, o que era esperado e nem cons-tituía um problema. Eles já estavam acostumados a viverdesamparados. Técio e a irmã, Sebastiana, ficaram „por aí‟,como Técio dizia: "Do mesmo modo que grande parte dosjovens do Rabicho e dezenas de outros da cidade. Mas éuma vida boa. A turma é animada. A gente sempre arranjaum monte de troços divertidos pra fazer." Por isso Técio tinha a tatuagem (uma insígnia dos "maus elementos"), alémdo boné de aba grande, que era usado de modo diferente porcada membro da turma (de lado, pra trás, com a aba apontando para o céu ou abaixada na frente do rosto), e as bermudas e camisas coloridas, várias delas, enormes, cheias debolsos grandes e fundos, e Sebastiana freqüentava bailesfunk e usava saias excessivamente curtas, que deixavam àmostra as coxas grossas, ou calças excessivamente apertadas, que exibiam as formas robustas, e blusas minúsculas,delineando os peitos grandes. A mãe não se metia na vidados filhos nem eles tomavam conhecimento de suas andan-ças. E, à noite, se porventura os filhos ouviam a cama de seuquarto ranger, ninguém se assustava, e ninguém tocava noassunto. Era esse o seu „trabalho‟, e era assim que ela conseguia "aumentar a renda da família." Era preciso tocar obarco.A mãe de Gerson também tinha ficado sem peru."Seu homem", que nunca fora de resolver coisa alguma, desapareceu de repente e nunca mais deu as caras. E Técioachava graça: "Eu vou te contar, cara, não sei como o sujeito pôde se casar com uma mulher daquela. Magrinha, muitomagra; não tem carne nenhuma pra gente pegar. Não tempernas, não tem peitos, não tem bunda. Não tem nada! Nunca teve. Osso puro! E baixa; baixinha – um cisco! Ele, o marido, tinha mais é que sumir mesmo! Mas só tem uma coisa:ela levanta cedo todos os dias pra ir à missa. Vai na igrejado bairro ali do lado. É perto. Daqui dá até pra ver. E, depois, vai direto pro serviço. Trabalha de diarista. Nunca faltatrabalho pra ela. Vai ver que é por isso que o filho é direitoassim. A mãe dá o exemplo. E Gerson brinca. Diz que o paifoi comprar cigarros e se perdeu na volta. Que um dia eleaparece. Mas o homem às vezes é visto na cidade. Mas nãoaqui nas ruas do bairro ou no Rabicho. E não dá um pingode confiança pro filho! Também, não faz falta nenhuma."Se para os rapazes da "turma" a subida ao cocuruto era difícil, pra Sebastiana tudo era muito mais complicado. Para subir pela trilha pela primeira vez, ela tirou os sapatos e os levou nas mãos, e os tropeços e escorregadelas naterra irregular faziam com que os brincos dourados que balançavam em suas orelhas roçassem com força suas bochechas morenas. O vento soprava suave e erguia de leve seutopete de cabelos encaracolados que caía, pequeno, sobre atesta. Sebastiana estava bonita.E Técio pensava que estava perdendo a irmã. Elegostava tanto dela ... Depois que tinha começado a trabalhar,Sebastiana, a irmã de Técio, dera pra dormir fora de casa.Dormia no emprego. Ou, como Técio e todos mais sabiam,não dormia sempre no emprego, mas em casa não dormia.Dormia com alguém – homem – em algum lugar. E costumava passar vários dias sem aparecer nem dar notícias. ETécio sentia sua falta. Mas ele não a estava perdendo. Aocontrário, ela estava morrendo de saudades do irmão. Sebastiana, quatro anos mais velha que Técio, gostava tanto deTécio quanto ele dela. Mas fora ele – mais alto e mais forteque ela – quem se preocupara ao vê-la se desenvolver, criarcorpo, ficar "gostosa", e começara a acompanhá-las quandoela deu pra sair para os bailes e clubes nas noites. E, quandoSebastiana principiou o namoro com o amigo de Técio, Fofão, um mau elemento moreno e magro, traficante, Técio seapavorou, tentou impedir. "Sebastiana, com esse não, nãovai dar certo! Você sabe que ele não presta, é vagabundo!Eu conheço porque é meu colega." Mas Sebastiana não desistiu do romance e Técio se sentiu o mais infeliz dos homens. Mais infeliz se sentiu no dia em que a irmã lhe afirmou que Fofão era tudo que ela queria, era "o homem desua vida" e que ele havia inclusive lhe "tirado a tampa."Depois disso, Técio não se meteu mais no negócio. Mas onamoro não foi em frente. Alguns meses mais tarde, Fofãofoi preso, processado, condenado, e Sebastiana, como umaresoluta e apaixonada acompanhante de marginal, tentou entrar no "caixotão" com drogas no meio das pernas, na xoxota, e foi pega. Não ficou presa (foi beneficiada por duasocorrências fortuitas: era primária, e não havia vagas femi-ninas disponíveis) e, enfim, sem a presença de „seu homem‟,o romance esfriou. Por fim, acabou definitivamente. Assim,umas três semanas depois de „a turma‟ ter descoberto o picomaneiro, o cocuruto, ela dava as caras.Observando a morena de short curtíssimo, microblusa apertada, que deixava muito salientes os peitos, os cabelos encaracolados partidos ao meio, o topete dividido caí-do na testa, Técio tinha até dificuldade em reconhecer a irmã. Mas era ela, claro! Sebastiana se sentara num monturode frente para a turma. "Alguém tem um cigarro?" Ela sempre fumava um cigarro antes de pitar um baseado. "É praacostumar a garganta. A fumaça do bagulho é muito forte."Tetéu não tinha cigarros, mas um dos rapazes estendeu omaço pra ela, que estendeu a mão, tirou o cigarro, que foiaceso. Depois de olhar atentamente para a irmã, e notar oquanto ela havia mudado, Técio cobriu a boca com mão direita, virando de leve o rosto para o lado: era de se rir! tinhafeito as unhas dos pés e das mãos.Neste ponto, descreva como ela era anteriormente.O dente quebrado. Colega da sobrinha de João da F.A mudança tinha começado como Sebastiana contou. Uma colega veio à porta do barraco lhe dizer que haviauma mulher interessada em uma empregada. Não era pra ficar direto, apenas limpeza três vezes por semana, e passaralgumas peças de roupa. Queria uma moça responsável, quechegasse cedo ao serviço, que fosse limpinha e esperta – boade serviço. Se ela desejasse, se estivesse com coragem de"enfrentar a onça", podia perfeitamente ir com ela que seriaapresentada e, sem dúvida, conseguiria o emprego. Sebastiana quis, ela não era „boa de serviço‟, não era „esperta‟ nãoera nada disso, mas estava precisando de alguma ocupação,estava andando sempre sem dinheiro. Ela ia. Ia fazer forçapra tolerar. Foram. E, logo na manhã do terceiro dia, come-ço de serviço, quando Sebastiana já estava principiando atomar raiva da patroa, como é norma acontecer com as empregadas domésticas, raiva por as patroas ficarem corujandoo tempo inteiro, tomando conta pra ver se as empregadas estão lavando as panelas e vasilhas de acordo, estão limpandoo chão, os banheiros e as vidraças no capricho, se estão fa-zendo tudo direitinho, raiva daquele modo de a patroa ficarolhando pra cara dela, pro corpo dela com o rabo dos olhos,a dona lhe pediu que se sentasse ao seu lado, no sofá, lhepassou o braço ao redor dos ombros, e disse: "Você é umamorena muito bonita, menina, eu tenho te observado, e achoque vamos nos dar bem, muito bem mesmo!" e trocaramidéias por certo tempo. E Sebastiana acabou indo com a caradela. Após mais alguns dias de convivência, a mulher resmungou: "Se eu tivesse seu corpo, moça, sua beleza, suacor, a sua idade, eu não teria entrado na gelada em que entrei. Não teria me casado com a merda de homem que encontrei numa péssima hora, - Deus que o tenha no mais profundo dos infernos!-, nem teria tido filhos, e não estaria nesta situação em que tô hoje. Tô separada, sem marido, comdois filhos pequenos, tendo que me virar pra arranjar granapra tratar deles e de mim!" E de fato se deram bem."A mulher pra quem tô trabalhando me disse quesou muito bonita, que mereço uma sorte melhor do que aque tenho tido. Disse que sou muito mal cuidada e tenho deser "produzida" e ela vai fazer isso comigo: vai me "produzir"; ela me aconselhou a arranjar um apelido; acha que meunome é muito feio, ela não gosta. Então, por favor, passem ame chamar de Tiana; foi uma sugestão dela mesma. Eu também acho muito melhor. Ela pediu que eu durma vez ou outra em sua casa, porque tá se sentindo muito sozinha e morro não é lugar de uma morena bonita como eu. Ela pensa assim. E disse que sou uma morena fashion – e que vou fazersucesso!"Enquanto fumava o cigarro, Tiana falava a respeito da patroa. Ela – a patroa - era estudiosa de técnicas orientais de harmonização de ambientes, um negócio chamadoFeng Shui (técnica chinesa que ensina como arrumar seucantinho para dar uma virada), fazia disso sua profissão eestava introduzindo essa técnica na cidade. Ia às casas daspessoas interessadas, desvendava as personalidades dos moradores, trocava idéias com elas, estudava os ambientes, efazia a harmonização. Escolhia as cores das paredes, punhaumas pedrinhas brilhantes num canto, pendurava umas fitasou uns objetos em outro canto, indicava a disposição dosmóveis, analisava a melhor forma de os objetos, os ambien-tes, capturarem a luz solar, porque, como afirmava, o FengShui tem como principal objetivo trazer bons fluidos para osambientes, tanto de casas como de escritórios ou locais detrabalho de qualquer tipo, e nada como a luz do sol pra daridéia de felicidade, de equilíbrio. "E onde entra a luz do solmédico não entra!" Baguá (mapa de feng-shui que mostraonde cada coisa deve ser colocada), mandala, ideogramas(da sorte, da felicidade, etc.) Reprogramar sua vida para fazer com que ela seja o que queremos. "É tudo ou nada! Somos um ímã poderoso para nossas emanações." "A sorte éum alinhamento de energia para quem esteja fazendo a coisacerta, no lugar certo, na hora certa, criando satisfação.""O que você pensa disso, Tetéu? Não é bacana?Você não acha que...?"Técio não achava nada; ele não estava nem umpouco interessado nas palavras da irmã. Pra começo de conversa, nem casa ele tinha. Morava num barraco, como elabem sabia. Tava bem ali em baixo! A família tinha vindopulando de morro em morro, de barraco em barraco, de ruela em ruela, e tinha aportado ali. E se agarrara. E ela também tinha morado lá. Durante quantos anos ele nem sabia aocerto. Um monte de anos. Quatro cômodos pequenos, de paredes tortas, mofadas, um banheiro de fossa no terreiro, dotamanho de uma caixa de fósforos, do tamanho do terreiro, eum pequeno fogão a lenha, feito de barro, escorado numaparede externa. Teto de telha de amianto, chão de cimentoqueimado. Lagartixas, formigas, baratas, traças e os mosquitos - aos magotes! -, passeando por todos os cantos. E, emépoca de chuva forte, as águas escorrendo pelas paredes.Assim eram todos os barracos do Rabicho. Não era à-toaque os rapazes da turma estavam se amontoando no cocuruto. Ou então ficavam pelas ruas. Ficavam "por aí". Pra sairfora daqueles casebres deprimentes. Harmonização de ambientes! Como era mesmo o nome do negócio? Feng shui!Isso mesmo! Hum!"Se for pra encher saco com essas conversas fiadas, ficar alugando os ouvidos da gente com besteiras, nemprecisa vir mais aqui em cima!" Mas Técio estava de brincadeira. Na verdade, ele estava adorando ver a irmã „em vias de se dar bem‟ e „andando nos trinques‟.Embora Técio e os outros membros da turma nãose dessem mesmo com o trabalho, havia determinadas ocasiões em que este fato o perturbava. "Como quando algumdeles pega o celular ou a carteira de alguém, normalmentemoças ou mulheres, e sai correndo, com a polícia atrás. Éfeio, troço muito feio. As pessoas param pra olhar. Comentam e apontam os dedos. Fazem ajuntamentos. Aconteceuhá poucos dias na feira livre. Tem feira livre todos os sábados de manhã, na avenida. O pessoal chega cedo. Chega namadrugada. Além das pessoas da cidade que vão às compras, aparecem estudantes da universidade aos montes. Rapazes e moças. Estão saindo dos bares e botecos e vão lavaras bocas. Tomar caldo de cana e comer pastéis. A gente tavalá, a turma. Mas não chegamos cedo. Esperamos a manhãavançar. Eu tava mais distante da turma, não tinha ido com aintenção de tentar nada, e nem queria correr riscos. Me encostei numa parede e fiquei só vendo as pessoas. Então, umdos garotos surrupiou um celular e saiu correndo. Ele nãoesperava que algum polícia o apanhasse pois corria em ziguezague e havia muita gente, muitas barracas, pra atrapalhar a perseguição. A feira tava lotada. Mas os policiaiseram espertos e foram atrás. Antigamente era mais fácil,muito mais fácil. Os polícias eram gordos, pesados, muitosde meia idade. Agora não mais; tem um monte de soldadosnovos e ariscos. Alguns são inclusive atletas. Disputamcampeonatos, corridas de fundo, maratonas. Essas coisas.Isso complica tudo. Então, eles foram atrás, pegaram o mo-ço, trouxeram pra perto da vítima e perguntaram: foi este?Ela, uma mocinha clara, respondeu: foi. E era tão certo o„foi‟ que o aparelho tava dentro do bolso traseiro da bermuda dele. Levaram ele preso. Mas os polícias que ficaram nafeira alinharam o resto da turma num muro e ficaram apalpando os caras, passando a mão nas bundas deles, nas pernas deles, nos corpos, acho que só de sacanagem, procurando coisas, armas, objetos roubados. E o povo olhando. Éruim isso. Depois, quando o cara passa na rua, o pessoalaponta o dedo e diz: Olha lá, o cara que tomou geral da polícia! E, pior ainda, quando o cara é „de maior‟, os retratosdeles costumam aparecer nos jornais. Aparecem nas páginaspoliciais. E as pessoas compram os jornais e vão direto paraas páginas policiais. Ver quem tá perturbando o sossego dasociedade. Mas ninguém aponta o dedo pra um trabalhador!E os retratos deles jamais aparecem nas páginas policiais.Eu particularmente acho que os trabalhadores são trouxas,mas, pelo menos nisso..."Vacilando em sua vagabundagem, Técio achavaque às vezes era melhor ter um emprego, ou uma profissão,e uma renda, mesmo que pequena, e poder comprar o que sequisesse (desde que o dinheiro fosse suficiente) sem incomodar ninguém nem ficar servindo de diversão e assuntopros outros. "Perguntar os preços, regatear, e comprar – enão ficar devendo filho da puta nenhum! Nem um tostão!"Mas ele não tinha esse costume: "Trabalhar, cara?!"Vendo a irmã sentada num monturo de frente praele, o cigarro na mão, um baseado cuidadosamente enrolado, apoiado atrás da orelha esquerda, esperando sua vez deser queimado, Técio pensava: depois de tanto viver em barracos fuleiros, ruas e ruelas esburacadas, poeira ou lama, deviver como um bicho acuado, Tiana sentiria dificuldades emabandonar o morro. Ali estava ela, outra vez. Viera visitar oRabicho. Ela sempre se dera bem no Rabicho. "O pessoalfala muito, mas o morro é divertido. A gente vive no meiode pessoas que falam a nossa língua, vivem os nossos problemas. Se preocupam com a gente"; (mas nem sempre issoera verdade. O dente quebrado que sua patroa mandara consertar, por exemplo, e que, Técio achava, lhe dava um ar diferente, fora ganho numa briga com uma vizinha), mas amoça estava começando a ficar incomodada, notava-se. Paraela, deixar o morro para sempre era uma questão de tempo.Tiana não estava combinando.Por sua vez, Tiana olhava para o irmão e pensavaalgo semelhante. Ali estava Tetéu. Não estudara – o que, nomorro, não era nenhuma novidade; nem aprendera uma profissão – fato que, também na visão de Tiana, não fazia grande diferença. "Conheço centenas de pessoas que trabalham,sempre trabalharam, pessoas profissionais, e vivem na maiormerda! Famílias inteiras sempre em dificuldades!" Mas Tia-na amava o irmão e desejava vê-lo „se dando bem‟, „numaboa‟. E, desta vez, ela trazia uma mensagem pra ele:"O que você vai fazer agora, Tetéu?""Vou ficar sentado aqui até logo, até à noite.""Eu digo fazer depois desta data.""Que data?""Ora, você sabe de que eu tô falando!""Você tem me falado tanta coisa que nem melembro. E só tem me falado merdas.""Você completou dezoito anos – e agora não podemais vacilar! Você sabe disso. Até pouco tempo, você brincava, dizendo que „a Carta‟ te protegia, mas agora você ficou desamparado.""Ah, fiquei é?"Tiana se calou e também Tetéu. Mas ele sabia queela estava de fato preocupada com sua situação. Tinham sido muitos anos de andanças e bagunças juntos, e Tiana nãodesejava ver seu parceiro desamparado. ......."Você pode mudar sua vida, Tetéu", ela disse, segura de si, erguendo de leve o queixo ao expelir a fumaça docigarro, "muitas pessoas mudam suas vidas aplicando os ensinamentos que tenho aprendido.""Todas as pessoas têm uma lenda pessoal a cumprir. E você pode fazer de sua vida o que você quiser, Tetéu.A primeira coisa a fazer é estabelecer metas: „vou fazer isso,em seguida, faço aquilo‟. E, à medida que as metas foremsendo atingidas, estabelece novas metas, novos desafios.Projetos pessoais. Algumas pessoas conseguem mesmo fazer objetos voar com a força da determinação, com o poderda mente. Outras entortam talheres e levitam. Saem do chão.E você pode transformar sua vida em ouro, se quer saber. Éa alquimia. Minha patroa têm me explicado estas coisas todas.""Hum!""A gente deve usar a vontade da gente como sefosse uma espada. E, quanto mais férrea for nossa vontade,mais o fio de nossa espada estará afiado, mais possibilidadestemos de alcançar nossos propósitos. Nós precisamos partirpra cima dos nossos desejos com todas as nossas forças. As-sim, nós vamos desbravando nossos caminhos, por mais difíceis que eles sejam. Você acredita nisso, Tetéu?"Técio não acreditava."Poucas coisas deixam a gente mais satisfeita doque ser tratada com distinção, Tetéu. E você pode conseguirtudo isso. Andar bem vestido, ter grana, essas coisas que fazem a diferença. Ter poder de adquirir as coisas. Quandopasso perto das pessoas usando perfumes caros, elas olhampra mim, com admiração; nos salões de beleza, sou muitobem tratada, porque sou uma boa cliente, dou gorjetas, pagoà vista, e tô sempre lá, fazendo as unhas, arrumando os cabelos; quando o celular chama e eu atendo ele, as pessoasolham pra mim; quando tiro a carteira da bolsa..."Irritado, Técio a interrompeu:"E o que isso tem a ver comigo? "Tiana, desconsiderando a rudeza do irmão, disseque a patroa, além do Feng shui, também era estudiosa delivros de auto-ajuda e estava lhe dando muitas dicas valiosasde como se dar bem na vida, de como alcançar a "platitude",ganhar dinheiro, estabelecer boas amizades, ter as coisas –ser feliz. E tudo o que ela estava ouvindo, aprendendo, seriade muita utilidade também pra Tetéu, ela tinha certeza. E elagostaria de lhe passar estas mensagens.Técio se ajeitou no piso de cimento. Ele, que costumava ignorar tudo o que não se referisse às suas necessidades mais imediatas, deu uma olhadela pro rosto da irmã ese calou. Contudo, embora parecesse de fato se incomodarcom os assuntos de Tiana, sua presença estava mexendocom a auto-estima de Técio, ele pretendia mesmo correratrás de alguma coisa."É mesmo, cara?!"Do mesmo modo como nunca gostara de usar suamente nos estudos, Técio também detestava pensar emqualquer coisa honesta séria, mas agora ele não tinha maiscomo se esquivar – e nem tinha como correr do fato: ele tinha se tornado "de maior." E isso constituía um problemasério. E, agora, ele tinha de pensar! Se sentia na obrigaçãode imaginar uma direção pra sua vida. Técio pensa:E assim, quando a primeira lua cheia iluminou ococuruto, encontrou Tetéu sentado no passeio, encostado aomuro da antena, pernas dobradas, cotovelo direito escoradono joelho, mão no queixo, sozinho, pensativo, ruminando.Era exatamente isso: ele tinha feito dezoito anos. O cocurutoera bom pra descansar "de não fazer nada", mas, infelizmente, pra Tetéu, era também um lugar ideal para meditar, e issoo levou a considerar as palavras da irmã, e ele não teve como deixar de concordar com Tiana: já tinha se tornado "demaior" e, de agora pra frente, se fosse pego, seria diferente.Enfrentaria processos, ficaria preso, não tinha como nãopassar por isso: já era manjado pela polícia, pela população.E ele não nascera para ficar enjaulado num cubículo indefinidamente e, troço muito complicado, junto com outros homens. Isso, se não acontecesse coisa pior: ele podia tomarumas bordoadas no "caixotão". E já não assentava pra eleficar arrombando carros pelas noites e madrugadas, às vezesmesmo à luz do dia, e menos ainda ficar tentando vender,para receptadores fodidos, os aparelhos, por ninharias comose fosse um "ladrãozinho pé-de-chinelo qualquer". Ele era„de maior‟. E Tetéu não tinha outras armas a não ser o queaprendera a fazer até então – andar à margem da vida. Nassombras. Pequenos roubos, furtos, tráfico (mas Técio nãoapreciava o tráfico de drogas: "Qualquer pivete é traficante,porra! Basta que o cara pegue o bagulho, enfie no bolso, efique por aí, disputando espaço com quem sabe das coisas.E tem um enxame de pequenos traficantes, de aviõezinhos,sem nenhuma aspiração que não a de arranjar um pouquinhode grana!") E correria, muita correria pras quebradas, proscantos. Essas coisas. Nem tinha uma profissão. Mas ele játentara fazer coisas diferentes. "Como da vez que fui trabalhar num grande supermercado. Tirei as costeletas, os quatrobrincos (bijuterias) das orelhas, aparei os cabelos, fiz a barba, tomei banho, escovei os dentes, vesti uma roupa decente,calcei sapatos limpos, cobri a tatuagem com a manga dacamisa e - coisa que eu sabia ser muito importante – fiz umtreino em voz alta, pra cortar as gírias. Eu não podia usarlinguagem de malandro! Queria estar apresentável. Minhaintenção era trabalhar de entregador no caminhão e convencer o motorista a me deixar pegar no volante vez ou outra.Eu não sabia dirigir e precisava aprender, se quisesse darsaltos maiores algum dia, como tava planejando – roubarcargas. É um filão promissor, a gente vê isso aos montes natelevisão. Os caras vão lá, tocaiam os motoristas, amarrameles no mato, e desaparecem com as cargas, com os caminhões. Vendem pros comerciantes. Muitos compram, vaiver alguns até encomendam cargas roubadas. Remédios,móveis, eletrodomésticos. Cargas de cigarros. É tudo coisafácil de se vender. Gasolina. Pode-se até oferecer os caminhões de volta pros próprios donos deles mesmo, por umpreço mais barato. Muitos assaltantes fazem isso; telefonampras firmas e falam com os donos. Negociam com eles. Erevendem os caminhões. Todo mundo fica satisfeito. Claroque não disse nada disso ao ser entrevistado. Desejava apenas o serviço; tava necessitado. Mas fui aceito provisoriamente como repositor de estoques nas gôndolas e prateleirase entregador de folhetos quando houvesse necessidade, enão consegui passar disso. Recebi ordens de, quando saíssepra entregar folhetos, ir a todas as casas, de todos os bairros,mesmo os mais afastados, e enfiar eles nas caixas de correio, nas portas de garagens, que entregasse às pessoas nasruas. E até comecei bem essa função. Enfiava as mercadorias nas gôndolas, depois, pegava aquela merda, muitos folhetos, e me punha a distribuir. Mas notei que as coisas não dariam certo. Primeiro, era muito trabalho. Dentro do supermercado, era o zunzum o dia inteiro. As pessoas esbarrando,perguntando, empurrando os carrinhos. Os encarregados efiscais cobrando eficiência, pontualidade, atenção. Segundo,nas andanças, na distribuição de folhetos, que eram semanais, não haveria sapato que agüentasse, não haveria roupaque resistisse ao suor, pernas que suportassem andar por todas aquelas ruas, todos aqueles becos, morros e bairros, durante o dia inteiro. E o frio ou o calor!?" E Técio pediu umabicicleta e roupas adequadas ao gerente e ouviu que não fazia parte da filosofia da empresa dar bicicletas ou vestes aosempregados. De mais a mais, ele teria de bater em todas asportas, pra que ele queria uma bicicleta? O negócio era andar! E o gerente ainda lhe avisou que os folhetos tinham deser entregues o mais rápido possível. Se não conseguisse fazê-lo no prazo estipulado, durante o dia, que fizesse o servi-ço também à noite. As promoções tinham uma data definidapra acabar, como ele estava "careca" de saber. Era precisodesovar os estoques. "Falei: „ah, é?‟ Fiquei pouco tempo,um mês e uns dias, passei a mão em meu salário, merreca,coisa pouca, nem disse que ia deixar o emprego, estava deexperiência, porra! Vim pra casa, joguei os folhetos da ocasião num buraco, e nunca mais voltei lá. Eu não! Os folhetosestão ali em baixo até hoje, jogados dentro do buraco!"Várias considerações estavam pondo Técio emalerta na „profissão‟ que ele pretendia seguir. Por mais queas ações fossem planejadas, pensadas, por mais que a rela-ção custo-benefício fosse levada em conta no planejamento(e se ele tentasse alguma ação contra alguém e fosse pego?E se ele fosse agredido e ficasse inválido? Ele não teria emquem se escorar! E se ele fosse morto? [esta última possibilidade ele considerava a menos provável: "geralmente aspessoas não reagem a assaltos"]), algumas vezes tudo davaerrado e alguém saía no prejuízo. Muitas vezes mais de umapessoa. Como aconteceu com um membro da turma. Genteboa, alegre. "Nunca vi o Itair resmungar por qualquer motivo. Nesse ponto, ele me dava de mil a zero. Eu sou chorão.Reclamo por tudo, xingo. Só não choro, mas algumas pessoas me dizem: „cara, você é um saco!‟ Ele não tinha essasfrescuras. Então, como estava esbarrado, andando sem granae no mesmo batido do resto do pessoal (noites na rua, muitos goles e coisas do tipo), entrou nas paradas: pequeno trá-fico de drogas, muitas andanças. Primeiro conseguiu umfornecedor miúdo. Depois, foi construindo uma freguesia eaumentando a quantidade adquirida. E estava indo bem nometier, animado ele, muito animado; a qualquer hora, emqualquer lugar, se o celular chamasse, ele estava semprepronto a atender. Estava a postos. Levava o bagulho emqualquer parte. Mas se enrolou. Pegou a droga em consigna-ção, desapareceu com ela, e não repassou o dinheiro. Deixou de receber por algumas remessas, e ele próprio andoucafungando um bocado, e, ele não disse, claro!, mas deve termalhado o produto, misturado com um monte de porcarias,e arranjou uma ruma de inimigos. E inimigos ferozes, quenão esperam - e nem perdoam. Foi pego numa noite. O celu-lar chamou numa rua deserta, ele foi de moto, mas era umacilada. Arrebentaram com ele e ele não morreu. Agora, ficaem casa – mas na casa das irmãs, duas moças. Elas são muito diferentes dele. Trabalham muito, todos os dias, são esforçadas. Não fala mais, só balbucia - ham, ham, - e a babaescorrendo pelo queixo, pelo peito abaixo. E nem anda direito. Anda muito devagar, arrastando os pés, e apenas seescorado em alguém. E nem sai de casa. Não tem como sair.E tá com um buraco de todo tamanho no topo da cabeça. Tácom o crânio quebrado. As irmãs afirmam que vão tentarconseguir uma prótese de platina. E vivem lhe dizendo quetoleram ele porque são religiosas, muito católicas, e "Jesusexige que perdoemos e ajudemos as pessoas, incondicionalmente!, mas, se não fosse Ele, elas o mandariam pro inferno, e o colocariam no olho da rua com a cabeça aberta e ababa escorrendo pelo peito e tudo!" Elas, como já tinhamafirmado, temiam agir de outra maneira e irem elas própriaspara o inferno.Tiana tinha vindo com mais lições da patroa."Nada é por acaso"; "Tudo ou nada"; "Você tá aí sentadooutra vez?" Mas não se pode apenas desejar as coisas, desejar mudar de situação e ficar igual você tem ficado. Nadaacontece por acaso, bicho! Você tem de criar as oportunidades, tem de ir atrás de seus objetivos. Se você tiver algumobjetivo em mente, tenha ele como um alvo. Como você atira em patinhos nos parques que vêm às vezes, à cidade. Suavontade é a seta que vai ser atirada nos alvos. É como minhapatroa me disse. Ela leu uma parte do livro e me explicou:nada acontece por acaso. É preciso por a mão na massa e fazer. É tudo ou nada. E quem tenta tudo sempre consegue alguma coisa; quem nada tenta, nada consegue. Fica na merda. Permanece parado no tempo."Mas alguns trabalhadores faziam também biscatescomo vagabundos. Donda: tentara abreviar a riqueza roubando na loja. Misturar com a polícia vem buscar.Muitas pessoas vivem as vidas mais idiotas, Tetéu, você tá cansado de saber. É só olhar aqui no morro. Ar-ranjam um empreguinho fodido, se acomodam na miséria,ficam com medo de tentar algum tipo de mudança, e se fodem. Ficam morando em barracos a vida toda, se enrolamem molambos, nunca têm uma sobra de grana pra nada! Eainda ficam mendigando cestas básicas ou restos de comidada classe média, das pessoas ricas. Mas não é preciso nadadisso. Deve-se ir na direção do nosso medo. Deve-se caminhar pra onde nosso medo aponta. É lá que tá o verdadeirofuturo. Deve-se dar um pulo no escuro. Minha patroa falou:"Moça, eu li nos livros e te digo: é no desconhecido que ascoisas acontecem!" E nem é preciso ter conhecimento prafazer as coisas, fazer coisas grandiosas. Basta imaginar. Aimaginação é mais importante do que o conhecimento. Sevocê se puser a imaginar que um dia vai ter uma mansão,vai morar num casarão, que é um sonho de todos aqui noRabicho, sonho de muita gente, e ficar repetindo: „mansão‟,„mansão‟, casarão‟, „casarão‟, ou qualquer outra coisa, umcarro, um caminhão, roupas boas, você acaba conseguindotudo. Consegue tudo! Ao invés de ficar fazendo graça pormorar nesse barraquinho de três metros por dois, nesse pardieiro mofado, de paredes descascadas e telhado de telha deamianto, pegue o binóculo, vocês têm o binóculo, e olhe ascasas grandes e bonitas que são vistas daqui. Olhe as casasbem feitas e as ruas limpas e arborizadas do condomínio.Não olhe para os barracos! Jamais olhe! Olhe para as casasgrandes e diga: „Ainda vou ter uma daquelas! Ainda voumorar num lugar como aquele! Um carro de todo tamanhotá me esperando na concessionária!‟ E você tem de observarcomo as pessoas de posses vivem, e falar: ainda vou viverassim, ainda vou viver assim; vou andar limpo e bem vestido; vou andar de carrão e de motocão; vou virar classe mé-dia alta, vou ficar rico. Vou ficar RICO! Vou ser feliz! – sóque você tem de fazer as coisas acontecerem! Tem de lutarpra que elas aconteçam!""É mesmo?! E aí, cara? Como é que eu faço?""Use a imaginação! Ponha sua mente pra funcionar! Imagine: o que você quer fazer na vida, agora que é demaior? Vai continuar roubando telefones celulares? Ou vaificar tentando bater carteiras de mulheres e de moças desprotegidas? Vai ficar arrombando carros? Vai permanecerdisputando cheiradores de pó ou pitadores de baseados comesses garotos que „stão matando o negócio do tráfico com oamadorismo? Isso vai te levar aonde? É isso que você querda vida? Tudo o que você fez até hoje foi só ninharias, sóquinquilharias! E você tem de reprogramar sua vida, pra fazer com que ela seja o que você quer... a menos que vocênão queira mudar nada e esteja satisfeito por viver na merda! Reprogramar sua vida, bicho, pra fazer com que ela sejao que você quiser - esse é o lance! E, principalmente, pensegrande e, haja o que houver - nunca desista de seu sonhos!"Depois de Tiana descer o morro, Técio se esticousobre o passeio e relaxou. Então, era assim o modo de a situação começar a ser transformada pra melhor? Desejar ascoisas, pensar nas coisas, falar „mantras‟ vezes sem fim?! Sóficar repetindo „carrão‟, „mansão‟, „motocão‟, e troços do tipo?! E se aproximar das „pessoas de bem‟, das „gentes boas‟, pra extrair „fluxos positivos‟ e assimilar „bons fluidos‟ e„boas perspectivas de mudanças?‟"E será que funciona mesmo?" – ele se perguntou.Alguns vacilam e se dão mal: matam e têm de desaparecer.Técio se decidiu a levar mais a sério as palavrasda irmã. Ele não acreditava em nada daquilo, mas, não custava nada tentar; quem sabe? Talvez algum dia ele tivesseum estalo, imaginasse alguma coisa que ele pudesse fazer,que de fato pudesse levá-lo a modificar sua vida. Pegou obinóculo (a turma nunca abandonava o binóculo), e deu umaolhada nas redondezas. Viu as casas do condomínio: enormes, algumas com mais de um andar, ruas bem delineadasentrando e saindo debaixo de altas árvores, algumas carregadas de flores, e o calçamento bem feito. E carros passando. Depois passou os olhos por outros cantos da cidade e viumais casas bonitas, grandes, e prédios enormes, e carros, eruas limpas, e observou a quantidade de casas e de prédiosque havia na cidade – e ele não tinha sua casa, não tinha seucarro, não tinha nada! Nem roupa direito! E as sandálias deborracha e roupas estranhas que ele nunca deixava de usar!Já se acostumara, aquilo não era culpa de ninguém – era re-laxamento mesmo! Olhou os barracos. Não era pra olhar.Tiana lhe havia dito: "Nunca olhe para os barracos! Barracos baixam o astral, arrasam qualquer um! E, ao entrar nasua espelunca, faça de conta que está entrando numa mansão. Pisando em chão de mármore. Imagine! Você tem deusar a imaginação!" Mas ele olhou e não teve como nãoconcordar que barracos jogavam o astral nas profundas. Incrível: nesta altura dos tempos, ainda havia gente que morava em barracos de pau-a-pique! Ao invés de sandália de borracha - tênis de marca famosa, sapato alemão (pra quemgosta; Técio não gostava de sapatos; gostava de sandáliaspra ouvir o som no calçamento), ao invés de....; ao invésde..., etc. Mas não se aproxima das mansões. Mas ele tomouuma precaução: não se aproximar dos condomínios fechadose nem ficar rodeando prédios chiques, pois alguém poderiamuito bem chamar a polícia. „O povo já me conhece. Se eume aproximar...‟Tiana não teria tempo pra ficar subindo o morro.Ela estava com a agenda entupida de compromissos. Por isso, ao voltar, foi apenas pra se despedir."Não sei se você vai gostar de saber, Tetéu"."Saber o que?""Do que vou lhe falar.""Diga"."Acho que você vai ficar chateado"."Vamos ver"."A patroa me aconselhou a não subir mais aqui.Disse que, quando quiser ver meu pessoal, pra eu vir de táxiaté o fim da rua e não passar do barraco. Cocuruto não mais.E pra vir ao Rabicho o mínimo possível.""Chique!""Não se trata de chique!""Então, de que se trata?""Ela disse que eu preciso pensar em meu futuro.Preciso conservar minha beleza. Conservar o frescor de minha pele.""E o que tem isso a ver com o cocuruto?""Minha patroa disse que não posso criar músculos; os homens gostam de mulheres lisinhas, de pele macia,delicada, sem músculos, sem manchas. Se eu ficar subindomorros, minhas pernas se parecerão com pernas de jogadores de futebol: musculosas, rijas; e meu corpo vai tomarproporções de corpos de operários da construção civil. Peledura, músculos e nervos furando a roupa. Não vou mais subir o morro, Tetéu! E, se eu ficar com fissura pra pitar umbaseado, ou cheirar uma carreira, não há problemas: nós duas pitamos e cheiramos juntas lá em baixo mesmo, lá na casa da patroa; ela também gosta"."Ah, que ótimo!""Ela receia que eu perca clientes e sua renda caiaassim como a minha. É ela quem agenda meus clientes.""Ah, então é assim a coisa?""Quero me conservar bonita e gostosa durantemuito tempo! E o morro não acrescenta nada de positivo àsminhas aspirações profissionais. Pessoas educadas não freqüentam morros e nem moram em morros! Quero ser fe-mini-na! Quero que os homens me desejem!"Tiana afirmou, convicta, separando as sílabas."Humm...!""Vou começar a freqüentar uma academia. Fazerginástica com acompanhamento de um personal trainer,modelar o corpo. Tetéu, eu tô adorando fazer sucesso!"Definitivamente, aquela não era mais a Sebastianaque havia não muito tempo morava no barraco de Técio. Eela não tinha mais o que fazer naquele lugar, nos barracos enas ruas do morro.Mas, antes de descer, ela ainda queria saber maisalguma coisa, dúvida que de fato a interessava:"E aquele negócio, Tetéu?""Que negócio?""A alquimia.""Até hoje não consegui mover nenhum objetocom a mente... e não consegui fazer nenhum voar; mas tenho feito força. E não consegui transformar nada em ouroainda, se você quer saber."Como se não tivesse ouvido os deboches do irmão, Tiana acrescentou:"Eu não sei se você tá pensando alguma coisa.Alguma coisa que digo é a respeito do assunto que eu tenhote falado. Das transformações que você pode provocar emsua vida. Da alquimia que pode acontecer com sua situa-ção."Técio não respondeu, mas passou os olhos pelorosto, pelo corpo, pelas roupas, da irmã. Tiana tinha mudadodefinitivamente. A alquimia, para ela, estava funcionandodireitinho. Se tivesse permanecido no Rabicho, provavelmente ia transformar sua vida em merda: na certa ia arranjarum „boneco‟, ou mesmo uns „bonecos‟ (virar mãe solteira),ia ficar trepando no mato, pitando baseados pelas quebradas,ou cheirando carreirinhas malhadas, como acontecia bastante por aquelas bandas; e, depois, se não fosse morar com algum vagabundo, como era também de praxe, perigava elaentrar em alguma fria e acabar também no "caixotão". Masali estava a moça, se despedindo. Tinha "dado sorte"; encontrara uma „empresária‟ pra gerenciar sua vida, venderseu corpo, alugar sua pererequinha – e as duas estavam "sedando bem.""Se você tá pensando, Tetéu, não fique só no pensamento. É preciso agir, minha patroa vive me falando isso.É preciso por as mãos na massa. Não se pode perder tempo.A vida passa. Ninguém vive só de seus sonhos! E ninguémvai te dar a mão! Ninguém! Você tem de fazer as coisas porsi mesmo. E, se você continuar nesta vida, vai entrar em alguma roubada, na certa vai se estrepar; vai acabar caindonas mãos dos „homens‟, e o pau vai quebrar – e eu não voute visitar no presídio. Mulher nenhuma vai mais enfiar amão entre minhas pernas em portas de cadeias!""Que assim seja. Vá e seja feliz! E, se dependerde mim, mulher nenhuma vai mais enfiar a mão entre suaspernas em portas de cadeia!"A moça principiou a descida sob os olhares silenciosos dos amigos. Os caras nada falavam, mas tinham omesmo pensamento: a espada da guria estava afiada, e ela aestava colocando pra funcionar. O rachado no meio das pernas – a xoxota.Então, Gerson observou:"Sua irmã tá realizando a lenda pessoal dela, mo-ço!""Tá sim. A dela e a da mulher que tá vendendo ocorpo dela! A seta tá acertando o alvo!""Ela tá transformando a bocetinha dela em ouro!""Tá mesmo!""Acho que a bundinha também!""É isso mesmo!""Se duvidar, ela tá até batendo de boca no pau dos„clientes‟ que a patroa tá arrumando pra ela!""É o mais certo!"Sem medo de ser repreendido, Gerson acrescentou:"Ela tá dando todos os buracos do corpo!""Tá aprendendo direitinho as lições do mago alquimista."Fazendo troça, Gerson disse:"Tiana vai subir alto na vida, moço... e vai te deixar pra trás!""Vai sim... mas, se eu tivesse nascido com um rachado no meio das pernas, o negócio ia ser diferente.""Ah, ah!"Quando Gérson deixou o cocuruto e desceu proRabicho, Tetéu ainda tava sentado no passeio, calado, mãono queixo, olhando o infinito. Nuvens vagando, lentas, piosde pássaros, um gavião planando, manhã de sol, céu azul.Morros cobertos de árvores, altos eucaliptos. Dia bonito.Mas, mesmo em dias aprazíveis como aquele, era difícil praele imaginar saídas favoráveis pra realizar sua "lenda pessoal." Ele estava diante de várias encruzilhadas de medos enão sabia qual delas encarar, mas......... ...... ...... ...... ......A época das chuvas, que não demoraram a chegar,trazendo com elas a ventania e o frio, mostrou o ponto fracodo cocuruto: não havia uma cobertura onde a turma pudessese esconder. E a falta de proteção empurrou os rapazes devolta pro rabicho barrento, pra dentro dos barracos. E, entrando em seu barraco, Tetéu deu de cara, outra vez, com osmosquitos, as lagartixas e as formigas que zanzavam pelasparedes trincadas, as traças que se arrastavam, vagarosas,pelas paredes mofadas e pelo chão sujo, as gotas de águapingando do velho telhado de telha de amianto. As águas,penetrando nas rachaduras, iam descascando a pintura antiga, de cal, provocando um odor estranho, desagradável,manchando as paredes, e tudo contribuía pra abalar o ânimode Técio, pra lembrá-lo de quão fodido ele estava, de quãoninguém ele era. E as noites calorentas traziam o excesso depernilongos e sanguessugas. E ele odiava tanto esses bichos...!Mas o moço não estava entregando os pontos. Aocontrário, o sonho que ele havia muito acalentava (tornar-sechofer de caminhão pra roubar cargas), agora embalado pelas idéias da irmã, para as quais ele aparentemente não estava dando confiança, estava mais vivo do que nunca; ele tinha tido um estalo: Técio decidira entrar em uma autoescola. Bastava arrumar o dinheiro (nem precisava de muito) - e isso ele ia fazer. Era esse o primeiro alvo. Com a "espada afiada" – o ânimo férreo! – era apenas uma questão detempo. Bastava por as mãos na massa. Fazer as coisas. Umdia de cada vez. E, depois, outros alvos, vôos mais altos."Você pode mudar sua vida, moço!" – ele disse desi para si. E riu, olhando pro tempo, pra fora do barraco."Nunca desista de seus sonhos!" Ele ia dar uma de alquimista: ia transformar a miséria de sua vida em ouro! Ele não iafazer objetos voarem: ele próprio ia voar, voar, cada vezmais alto, enxergar longe! E, então: adeus Rabicho! Adeusbarraco! E riu, outra vez.E Técio reconheceu que a patroa de Tiana mereciabem ganhar uma boa gorjeta – se todos os seus planos viessem a ter sucesso. Animado, o moço falou a respeito do alvo, da espada afiada, da lenda pessoal, do salto no escuro,no desconhecido, com uma vizinha que morava num dosbarracos no Rabicho, trabalhadora doméstica. Morena, muito magra, baixa em excesso – um caco! "Pulo no escuro?!Lenda pessoal?! Que qui é isso? Mudar de vida!? Pra quê!?Minha vida tá é muito boa, se ocê quer saber! ! Pra que euvô mexê no que tá dando certo?" – ela se admirou ao ouviras ponderações do moço. E riu. Técio achava que talvez elatambém tencionasse fazer coisas diferentes algum dia,aprender alguma ocupação mais vantajosa. Mas ela não queria. Estava mais do que satisfeita com a situação; havendoserviço regularmente pra fazer, mesmo com baixos salários,e bailes com sanfona nos fins de semana, - forró -, não precisava de mais nada. Sua única preocupação, como afirmou,era ouvir o horóscopo no rádio todas as manhãs antes de sairpro serviço, pra direcionar o seu dia, e, nas sextas-feiras,pendurar um ramo de arruda atrás da orelha pra espantar oazar, se ele estivesse de olho nela, se ele estivesse rondandosua vida. Era isso que dirigia sua existência e era o bastante.Nem aprendera a ler. "Num gosto de leituras, detesto livros;essas coisas ocupam muito a cabeça da gente! Esquentammuito os miolos! Num gosto!" Por isso, comprara um par debotinas de plástico, que era substituído regularmente, umuniforme adequado, uma touca pra prender os cabelos crespos, e trabalhava como empregada doméstica – e estavamuito contente. Só faltava conseguir um namorado.Se ela estava satisfeita, Técio não estava. E Técionão almejava ser sempre um ladrão de cargas. "Do mesmomodo que posso roubar cargas, posso também vir a ser umempresário de sucesso." Era a outra parte do plano, o outroalvo: montar o seu próprio negócio. Roubar cargas até conseguir dinheiro suficiente e, depois, mudar de ramo: montaruma loja. E – como Tiana havia afirmado – "pensandogrande", enxergando apenas "à frente", ele tentaria coisasmaiores, montaria mais lojas e, em vez de roubar, passaria aencomendar cargas roubadas, mercadorias contrabandeadas,e iria abrindo mais lojas, compraria fazendas, sítios, ergueriaprédios, abriria hotéis. E os alvos iriam se sucedendo. "Agente vê isso na televisão. Os caras vão fazendo as coisas,montando lojas, construindo prédios, acumulando bens, ficam muito ricos e, depois, são pegos e aparecem na televisão como receptadores de cargas roubadas, de mercadoriascontrabandeadas. A cara mais lambida do mundo! E nempor isso vão presos. E menos ainda deixam de ser considerados „gente boa‟, „pessoas de bem‟, „cidadãos de condutailibada‟, „membros influentes da sociedade‟. Mas, no fim,não é nada disso! É tudo trambiqueiro! Tudo vagabundo!Tudo gentinha!"E assim, num cinzento e frio começo de madrugada, o moço decidiu que era chegada a hora de agir."Ninguém vive só de seus sonhos!" – afirmou a simesmo, resoluto – "pensar só não resolve; é preciso pôr amão na massa!"Tiana havia dito – e ele concordava.Pegou o revólver – ele tinha conseguido uma arma emprestada –, uma touca ninja, e desceu o morro.Gerson, é claro, não acreditava em lendas pessoaise duendes ou coisas afins. (Que pulo no escuro?! Que dire-ção do medo?!) Ele não tinha motivos. Tudo o que ele conhecia eram: horários, levantar-se cedo (senão alguém tomava seus serviços), às vezes cartões de ponto, imposiçõesde patrões e encarregados, exigências, implicâncias. Enche-ção de saco! "Como quando vou trabalhar pra casais de velhos aposentados. Os chatos batem o rabo na poltrona e ficam perturbando o dia inteiro. O velho: „Gerson, que diavocê vai terminar o meu serviço? Eu não posso comprarmais material, meu dinheiro tá acabando!‟ A velha: „Eu tôdoido pra ver a minha casa limpinha e você longe de minhacasa!‟" Pior ainda, o que o deixava mais injuriado, eraquando ia trabalhar na casa de homens que viviam às custasdas mulheres. Os caras ficavam o dia inteiro nas portas dosbares e lanchonetes no centro da cidade, futricando vidasdos outros, apontando o dedo para as pessoas e, ao saber queo trabalhador ia entrar em suas casas, mudavam o itinerário.As mulheres saíam pra trabalhar e eles ficavam "tomandoconta"; iam "administrar" o serviço. Se enfurnavam dentrode casa, tomavam vez ou outra um cafezinho, punham umcigarro na boca, e enrabichavam atrás do cara, do trabalhador: „Será que não dá pra você chegar mais cedo no serviço,não, moço? Tô com pressa desse negócio; vou dar uma festaem casa daqui a alguns dias!‟ Ou: „Você tá sujando demaiso chão e os móveis. Assim eu vou ter de gastar grana com opintor e com uma faxineira pra limpar a tinta!‟ Gastar grana!? Quem estava pagando pelo serviço nem eram eles! Elesviviam às custas das mulheres, porra! Coisas do tipo.Além de todos esses inconvenientes incontorná-veis, havia a chuva. Do mesmo modo que a chuva tinha espantado a "turma" do cocuruto, a aproximação da "épocadas águas", como os trabalhadores diziam, constituía um de-sespero adicional para eles. Serviços externos não tinhamcomo ser feitos, muitas obras eram interrompidas, os operá-rios caíam como moscas em cima das poucas que continuavam em andamento, e o preço dos orçamentos ia lá para ochão; ninguém saía de casa, as chuvas impediam que os caras ficassem (como Tetéu dizia, troçando, fazendo analogiacom as putas que rodam a bolsinha pelas ruas, na esperançade pescar algum cliente) "rodando a broxinha" pelas ruas dacidade e, não sendo vistos, não havia como "serem chamados" pra trabalhar. E o objetivo de Gerson, tudo o que eledesejava, era ter um serviço após o outro. Como a empregada doméstica. Nunca ficar desempregado, nunca parar, sempre ter uma grana. Por isso, ao terminar um trabalho, ia andar pelas ruas, passar vagarosamente na frente das obras,das residências que estivessem em reforma, dar sopa nasportas das imobiliárias, na esperança de que algum conhecido o visse e o chamasse pra fazer alguma coisa, pra trabalhar lá.Mas Gérson tinha um sonho maior: nunca maisprecisar de fazer aquilo. Esmolar serviços, biscates, esmurrar portas de alguém pra conseguir trabalho, miséria de salá-rio. Discutir preços, horários de entradas e saídas. Escutarprosas e suportar imposições, até de "choferes de fogão",empregadas domésticas. Ficar batendo pernas pelas ruascomo as putas, esperando que alguém "o chamasse." E, na"época das águas", que o mundo se danasse. Que chovesse acântaros e molhasse todos os prédios e casas, os jogasse nochão, impedisse todo os serviços - desde que, lógico!- elenão estivesse mais precisando deles. Enquanto não vislumbrava uma saída convincente para sua situação, o jeito era irtocando o barco, ir remando.Como nem tudo são tragédias, costumava acontecer de alguém, alguma empregada que o conhecia, o indicarpra pessoas que estivessem necessitando de mão-de-obra.Então, ele ia e fazia o serviço. E acontecia, também, de essealguém que o havia indicado exigir uma percentagem doque ele tinha ganho. "Uma beirada", como diziam. Praqualquer lado que se virasse, sua posição era frágil, sua situação, periclitante. Por isso, Gérson tinha esse sonho.Justo nessa ocasião uma conhecida lhe indicarapra fazer um orçamento pra uma amiga. Sem compromisso.Essa, felizmente, não lhe exigira uma "beirada."E assim, num começo de dia, manhã muito clara,o moço desceu o morro pra ver o serviço; foi lá conversarcom a dona. Ele tinha prometido à vizinha e, principalmente, estava necessitado do serviço.Escolado por alguns anos de experiência, Gersonpodia bem imaginar como seria a conversa com a provávelfutura patroa. A empregada tinha dito que ela era baixinha,branca, usava óculos de grau, falava com voz ciciante, e eragente boa, viúva, mas fez uma ressalva: - ela é assim, ó! – efechou o punho da mão direita: a dona era pão-dura; nãogostava de gastar. Que provavelmente Gerson teria dificuldades em se acertar com ela, fazer um preço que ela achassecondizente. E Gerson foi, tentando imaginar como seria aconversa entre eles. Ele tocaria o interfone, se identificaria,e alguém (a patroa?) atenderia e abriria o portão. Em seguida, a porta da casa seria destrancada e se abriria uma pequena fresta onde apareceria uma cara seca, branca, e os óculos,e ele se apresentaria:"Bom dia!"Talvez a dona respondesse, talvez não. Algumaspessoas não se dão esse trabalho."Eu sou o trabalhador que foi indicado pra senhora.""Ah!"Então, a mulher abriria de todo a porta e, depoisde observar se os sapatos de Gerson estavam limpos, lhe daria passagem, dizendo „pode entrar, que vou lhe mostrar oserviço. Mas cuidado para não esbarrar nos móveis.‟""Um velho preto está encostado ao balcão do boteco tomando uma pinga. É de manhã, o dia ainda nem acaboude nascer direito, e o preto já tá tomando uma pinga. E vaiver nem é a primeira! Mas, antes de se fixar no velho preto,Gerson decide considerar o dono do boteco. Lançando mãodas teorias da „espada afiada e da lenda pessoal‟ que a manade Técio tem usado tão amiúde, Gerson tenta adivinhar se odono do boteco realizou sua lenda pessoal. "Se não realizou,se não pôs sua espada pra funcionar até agora (e, se pôs, errou o alvo!) – pondera Gerson – é tarde; o homem já tá bastante entrado em anos, tá velho, a morte é seu destino maisprovável em pouco tempo, ao invés de a realização de qualquer projeto pessoal." O sujeito é gordinho, muchibento,barrigudo, claro, baixinho – ridículo! – pensa Gérson -, bigode espesso; usa óculos de grau, muitos cabelos lisos completamente brancos – deu sorte de não ter ficado careca! -, acamisa de cor clara é puída e um tanto ensebada... Vai vernão tem dinheiro nem pra comprar roupas e nem pra pagaruma lavadeira. Seu boteco não é dos mais limpos. Só possuiuma feia porta de madeira descascada. Há um buraco naporta, na parte de baixo, ao lado do portal, de tamanho suficiente pra dar passagem a um rato de bom corpo. Mesmo decerta distância, pode-se ver que há muitas manchas nas paredes, sinal de que elas não vêem pintura, nem mesmo umamísera caiação, há bastante tempo. O balcão, além de antigo, tem um dos vidros partido. Há falhas na ocupação dasprateleiras, o que leva Gerson a deduzir que o homem tá fodido, tá sem grana pra comprar mercadorias e talvez estejaaté quebrando, esteja em vias de encerrar as atividades. Gerson pondera que o homem, o dono do boteco, não realizousua lenda pessoal, não desembainhou a espada, teve medodo futuro - se é que vislumbrou algum futuro à sua frentealguma vez! - ficou receoso de pular no escuro. Não caminhou pra onde seu medo apontava. Preferiu ficar ali, namesmice, pregado atrás do balcão daquele chiqueirinho,vendendo pinga e bebidas ordinárias, talvez fiado!, pra pretos velhos miseráveis e outros tipos de pinguços, ganhandouma ninharia ou coisa nenhuma, ao invés de dar um salto nonada, na incerteza. Não vencera na vida, certamente nãochegara a lugar algum, pois, se o tivesse feito, seria proprietário de pelo menos um restaurante decente. Não foi umguerreiro; não era um vencedor.Depois, Gerson se volta pro preto velho. Por serpreto, pensa Gerson, o sujeito já começa mais fodido do queos outros. Para os pretos, todas as coisas são mais difíceis;como se diz: para os pretos, o buraco é mais embaixo. Opreto, um pouco curvado sobre o balcão, bebe olhando profundo do copo, inclinando levemente a cabeça pra trás aodar as goladas, e arregala os olhos pro teto sujo do boteco, edegusta a bebida, brincando com ela dentro da boca antes deengolir, como se fosse a última timbuca que fosse tomar emvida, ou então que fosse a calibrina mais gostosa que já tivesse tomado até àquela ocasião. Demora-se bastante com ocopo. Termina a pinga e o põe sobre o balcão. Em seguida,se inclina levemente em direção ao proprietário e diz qualquer coisa. Este, com as palmas das mãos apoiadas sobre obalcão, olha carrancudo de baixo pra cima pra cara feia dopreto e faz uma expressão de contrariedade, talvez o pretovelho lhe tenha dito que no momento não tem grana, tá financeiramente prejudicado, mas ele, o dono do boteco, nãose preocupe, pode anotar a bebida, porque ele não vai demorar a pagar por ela. "Se é assim, por que não me disse istoantes, moço? Sem grana, eu não lhe teria vendido merda depinga nenhuma! Todas as mercadorias existentes em meucomércio foram compradas e pagas e, se eu não estiver como dinheiro à mão, meus fornecedores não me entregamelas!" – Gerson imagina. O dono do boteco pega o copo sobre o balcão e caminha raivoso em direção da pia para lavá-lo. O preto tenta endireitar o corpo, faz um gesto de poucocaso erguendo a mão direita e dá um sorriso de deboche.Depois, vira as costas e sai caminhando. Anda devagar, ainda curvado, com dificuldade. O chapéu ensebado, surrado,lhe cai sobre os olhos, e seu esqueleto dança dentro da camisa de mangas compridas e das calças maiores, muito maislargas, do que seu corpo muito magro. Deve ter ganhado aroupa de alguém, – pensa Gerson – talvez de parentes de algum falecido e o defunto era maior. Seus pés calçam velhassandálias de borracha e seus dedos pretos estão tão secos efinos que parecem querer se soltar. Tá na pior, nota-se. "Aespada do preto velho enferrujou e ele ficou fodido, - Gerson pensa, enquanto observa o homem se afastar, vagaroso –também ficou com medo do futuro, o futuro chegou e eleperdeu o bonde da história, como havia feito o dono do boteco. Sua lenda pessoal também não se realizou." Eu tô bemacompanhado! Eu também tô fodido! Tô na merda! - Gersonri, achando graça. Mas ele estava gracejando. Ele conhecia ahistória do preto. Ele tinha vindo da roça com uma penca defilhos, até corcunda de tanto que puxara o cabo da enxadanos becos de café, razão pela qual se locomovia levementecurvado. O dono da fazenda pra quem ele trabalhara durantemuitos anos estava modernizando sua propriedade, tinhacomprado uma colheitadeira e um trator, e tinha contratadochoferes experientes pra usar os veículos, e dispensara amaioria dos empregados mais velhos e o preto tinha saídona leva, tinha pegado sua grana do fundo de garantia e tinhavindo tentar a sorte na cidade. Mas encontrara apenas ummonte de gente fodida como ele, algumas mais jovens, muito mais novas e fortes do que ele, correndo atrás da tal delenda pessoal, jogando no bicho, em todos os tipos de loterias, disputando migalhas de serviços desclassificados – limpar um terreno baldio, capinar um jardim, arrancar umagrama, tomar conta de uma obra -, e, com ele, nada de bomtinha acontecido; a pouca grana que trouxera tinha acabadoe a espada dele, ou melhor, a enxada dele tinha enferrujado(ele tinha trazido sua enxada, que era o seu currículo profissional), o fio da enxada dele tinha ficado rombudo e inútil, etalvez o cabo tivesse se partido e ele também tinha enferrujado, entortado, e agora tinha ido ao boteco, tinha se encostado no balcão e tomado uma pinga. Era de manhã ainda eele já tinha tomado uma pinga fiado e, durante o dia, Gersonsabia muito bem, se os donos dos botecos não ficassem espertos, ele ia tomar mais umas muitas pingas fiado, que erapra empurrar a vida – e possivelmente nem ia pagar porelas! Gerson sabia que ele adorava uma pinga - e nunca tinha grana.Gerson acompanha com os olhos a lenta caminhada do preto velho pela rua. Ao ver Olívia Palito se aproximar do sujeito, ele pára. Espera. Observa a mocinha magra,magrinha. Eles param um de frente pro outro, gesticulam ese falam. Gerson ficou curioso. Qual era a sina da Olívia Palito? Qual era a lenda pessoal que ela poderia estar perseguindo? Será que ela tinha nascido com algum tipo de espada que lhe permitisse tentar abrir ao menos uma picada entreos caminhos tortuosos de sua vida miserável? – Gerson olhapra ela e tenta encontrar alguma razão pra vinda da moça aomundo. Talvez ela não tenha nascido com uma espada enem tenha uma lenda pessoal a realizar, ela não tem comorealizar nadinha de nada. Olívia tinha nascido com uma xoxota, como todas as mulheres, xoxota que ela punha à vendapra tentar empurrar a vida. Mas ela não tá com nada no balaio! O nome da moça era Olívia, o palito lhe foi dado emrazão da extrema magreza, e devido à extrema semelhançacom a namorada do Popeye. Mas Olívia não tinha o gênioda esposa do Popeye nem seu cabelo se parecia com o cabelo da Olívia do Popeye. Na verdade, parecia que a moçanem tinha gênio. Era apenas aquele montinho maluco de ossos, os cabelos sempre em pé e nunca lavados, os dentes empetição de miséria, e raramente de roupa limpa ou nova.Gerson não queria se referir a ela com as palavras que lhevieram à cabeça, mas, era um fato: Olívia era um lixo! E,como o preto velho, Olívia também gostava de uma pinga.Bebia quando lhe pagavam, como a mãe fizera amiúde antesde morrer. E, como a mãe havia feito, Olívia também trabalhava lá na beira linha, na casa das mulheres, das putas. Adona do brega não apreciava a presença da moça, mas, como a mãe trabalhara a vida inteira pra ela, ficava sem jeitode dispensar a filha - a Olívia Palito. E ela nascera no bregae nem tinha pra onde ir! Os homens costumavam reclamar,tinham nojo, falavam que a mulher, além de maluca, eraporca, suja, fedorenta, nem roupa tinha, bebia muito, e davauma impressão ruim do estabelecimento. Se ela tirasse acalcinha e abrisse as pernas à noite – diziam – os urubus nãodesceriam por causa do horário, mas, certamente ligariam asantenas: "Epa, tem carniça dando sopa em algum lugar láem baixo!" De resto, ninguém nunca comia aquilo mesmo,por que deixar Olívia dando sopa no puteiro!? Mas a donapermitia que ela ficasse ali. Era cria da casa, que ficasse. Opreto conversava com ela, e Olívia gingava vagarosamente ocorpo para a direita e para a esquerda, num sestro característico, e fazia gestos, apontando o braço seco pro boteco. Deonde estava, Gerson não podia ouvir o que diziam, mas, podia imaginar. Olívia tinha se aproximado do preto para pedirumas moedas pra um gole. Ela tinha dificuldade em articular as palavras e devia estar dizendo, babando e cuspindo nacara dos outros com a ponta da língua escorada sobre o lábioinferior, como de costume:"Eu piciso tomá u‟a piga, nu tomei niuma hoji inté agola!"O preto, também gesticulando em direção ao boteco, lhe responde que não tem dinheiro, tá na pior, há muitos dias não faz nada, há muita gente nas ruas fazendo os tipos de trabalhos que ele faz, a grana tá sumida, a situação tádifícil!"Ieu vi ocê virano u‟a piga agora mesmo, seumintiroso!"- Olívia Palito retruca, fingindo-se de zangada."Eu virei mesmo, mais sem grana! Eu num pagueipela minha pinga não!""Mintiroso! Pagô sim!""Num paguei não!"Olívia não se convence e encara o sujeito, que põea mão direita no queixo, como que pensando alguma coisae, por fim, diz:"Pur que ocê não faiz como eu fiz?""Cumé qui ocê feiz?""Eu intrei lá no buteco, pidí uma talagada bemmanera, depois de bebê eu falei qui num tinha grana e pronto. O dono ficô puto mais ele num pudia fazê nada!""E se ele me batê?""Bate não; o máximo qui pode te acontecê é ele tecontá uma prosa!""Pois intão ieu vô fazê isso mesmo!"O homem põe a mão no braço de Olívia, como acompletar o que lhe estava dizendo, e ela olha pra ele, o ouvindo. Os dois olham para o boteco e riem.Gerson outra vez está se virando para ir emboraquando vê Dimas Juriti se aproximando de Olívia e do pretovelho. Ele também é preto, tímido, anda devagar, com aspontas dos pés viradas pra dentro e tem um andar vagaroso,rebolando a bunda, assemelhado ao da pomba juriti. Comoalguém notou isso?! Gerson se pergunta, admirado, e qual éa lenda pessoal do moço, onde será que ele enfiara sua espada? Talvez este também tivesse nascido desprovido daespada, ou tivesse, num momento de desatino, enfiado suaespada na bunda: Dimas era bicha. Ele não se importava queas pessoas soubessem que ele gostava de homens, pois,como ele mesmo afirmava, nascera daquele jeito (bem queele fizera umas tentativas com as xoxotas, mas não deu certo), agora era tocar o barco, mas não era escandaloso. Pelocontrário, preferia dar aquela bunda preta dele no escuro, depreferência no mato, pois, como afirmava, "ele era muitovergonhoso e não se sentia bem tirando a calcinha (ele usava calcinhas femininas) na frente de homens". E Dimastambém gostava de pinga. Ele conversa com os dois, depois,vai pro boteco com a Olívia Palito e o dono fica puto.Gerson tinha errado por completo o desenrolar deseu encontro com a mulher. Nem precisou bater à porta. Adona já estava encostada atrás do portão da frente (esperavapor ele, pois tinha de sair); casa grande, antiga, bem conservada. Ao se apresentar a ela, a dona foi extremamente cortês, lhe estendeu a mão, disse seu nome, a voz débil, e oconvidou a entrar e ver o serviço. Ele a seguiu: um corpomirrado e baixo, uma cabeça pequena povoada por ralos cabelos louro-esbranquiçados, braços longos, manchas e pelancas, olhos protegidos por óculos de lentes grossíssimas,observando com atenção onde pisava, por medo de escorregar no assoalho muito bem encerado. Um grande par debrincos desbotados pendentes das orelhas secas marcadaspelos anos. Antes de lhe mostrar o serviço, a dona o levou aver o corpo da casa. Depois, o serviço. Eram apenas doiscômodos a serem trabalhados, mas espaçosos e altos. Osforros de madeira tinham sido trocados havia poucos dias,as paredes estavam esburacadas e sujas, desbotadas."É isto aqui. Há alguns anos eu fiz um serviço nacasa e deixei estes dois cômodos pra trás. Não tencionavamexer com eles tão cedo. Desta vez não pude evitar. Os tetos estavam podres, os cômodos são alugados pra estudantes, eu não estava conseguindo inquilinos pra eles. Os carunchos não davam sossego! Era aquele posinho irritantecaindo noite e dia! E o ruído dos dentes dos bichinhos... Nãoposso ficar gastando dinheiro. Sou viúva e a aposentadoriade meu ex-marido não é lá essas coisas. Às vezes, tenho decomprar remédios. Você sabe como é...; a idade..."Gerson sabia e explicou pra ela:"Este serviço é complicado. Os encaixes das lâ-minas de madeira terão de ser preenchidos com massa senãoficam os vãos escuros, a senhora sabe: deixar bonito comoos forros dos outros cômodos; e a madeira necessitará de vá-rias demãos de tinta. É madeira nova, absorvente.""Você acha que vou gastar muito material?""Mais do que a senhora imagina. Reformas emcasas antigas costumam ser mais complicadas do que a execução de trabalhos novos. As paredes normalmente estãomuito ressecadas... e há os remendos. Ocorrem gastos inesperados.""Ah!"A mulher olhou para a rua, olhos ativos e meigospor trás das lentes grossas. Passou vagarosamente a mão direita macilenta sobre a boca murcha, os lábios cheios de estrias."E quanto tempo acha que demoraria pra fazer oserviço?"Demoraria!"No mínimo dez dias. Se trabalhar muito!""Ah, isso tudo?!"A mulher pôs o dedo da mão direita sobre a bochecha, pensativa. Por fim:"Sabe o que é?""O que é?""Você sabe que quando os operários ficam sabendo que tem algum serviço na cidade eles aparecem comoformigas. Pedem o serviço, telefonam, entregam orçamentos, pedem engenheiros e mestres-de-obras conhecidos paraos indicarem aos donos das obras, pedem às empregadasdomésticas... as coisas acontecem assim, não é verdade?"Era verdade"Pois é. Apareceu aqui um senhor ontem à noite.Um senhor de alguma idade. Cabelos grisalhos, cara enrugada. Possivelmente está encontrando dificuldades pra conseguir serviços. Tá velho. E veio com um rapazinho, quaseuma criança. Eu não o conhecia. Então ele bateu na porta, seapresentou, e me pediu o serviço. Eu ainda lhe expliquei queera coisa pouca, apenas dois cômodos, e ele me disse „qualquer coisa serve; eu tô passando apertos, minha senhora!‟""E a senhora vai dar o serviço pra ele, então?""Ele me pediu. Disse estar muito necessitado. Eufiquei com pena dele. O homem tá tão necessitado, coitado... e tem família!""Mas ele pode cair da escada e se machucar... epode colocar a senhora em dificuldades.""Eu sei disso; eu sei e disse isso pra ele. Mas, não- ele me respondeu – meu filho vem comigo e nós vamosnos revezando. Nós costumamos trabalhar juntos. E ele segura a escada pra mim!""Então, está certo.""E ele fez um preço muito bom pra mim! Muitobom mesmo! E eu decidi dar o serviço pra ele.""Deixe o senhor grisalho trabalhar, então!""Em todo caso, se houver qualquer imprevisto, eumando falar com você. Ou, se você preferir, deixe seu endereço. Se porventura alguma colega minha precisar de pintor,eu indico você pra ela. Sempre ocorre isso.""Tá certo. Eu não me importo."Nada havia de estranho em deixar o barraco cedo(a empregada havia dito: a dona só pode esperar até às oitohoras; ela precisa sair), fazer o orçamento, deixar o endereçopara contato (que, ele sabia, não aconteceria), e voltar demãos abanando. Não fora a primeira vez e não seria a última. Como acontecera com um colega, segundo o porteiro deum prédio. "A mulher, inquilina antiga do edifício, atenderaum pintor que lhe havia sido indicado. Foi extremamenteeducada com ele. Inclusive, o que não é muito comum, permitira que ele pegasse em sua mão, ao cumprimentá-lo. Eficaram conversando e ela dizendo, risonha: „sim, senhorHeitor, sim, senhor Heitor, o senhor pode ficar tranqüilo quevou lhe dar este serviço. Eu tive ótimas referências do senhor e seu preço está muito bom! Estou muito satisfeita. Emuito obrigado por ter vindo!‟, e o moço, ao sair, disse aoporteiro: "Puxa vida, cara, se eu não tivesse arranjado esseserviço eu „tava fodido! Há muito tempo que não faço nada,nem biscate, e as coisas já „stão faltando lá em casa! Eu játava entrando em desespero!" Mas ele não fez o serviço.Como o porteiro lhe disse, alguns dias depois: "Lidar comeste povo é foda! Logo que você virou as costas, apareceuum cara lá no prédio e começou a trabalhar no apartamentodela. Demorou vários dias. Ganhou um bom dinheiro."Duas coisas aborreciam Gerson ao falar comDarcy. Primeira delas, o hábito que o sujeito tinha de se debruçar sobre o rosto das pessoas, enquanto lhes punha a mãosobre um dos ombros e apertar, um gesto irritante. Segunda– e pior – Darcy, uma boca enorme (um bocão), cheia depedaços de dentes podres, falava com a boca cheia de cuspee lambuzava a cara dos interlocutores. Por isso, Gerson oevitava. Darcy, servente de pedreiro velho, moreno amarelado, a roupas em frangalhos, o boné sujo, as sandálias empetição de miséria. Um „bosta‟, sua esposa diria, sem dúvida. Mas Darcy não se casara. "Casá é complicado; ocê hojeem dia num sabe quem é muié e quem é sapatão! Ocê numsabe quem é puta e quem é muié de respeito! E as muié sóqué dinhero!" Mas o mais certo é mulher nenhuma ter se interessado por ele. Por isso, não havia como alguém reclamarse ele não aparecesse com grana em casa, ou se desaparecesse para sempre, ou se não comprasse boas roupas, ou seseu pau ficasse de meia engorda, ou nem subisse. Moravasozinho. Trazia o boné sujo embolado nas mãos, o boné queele nunca largava, o resto de cabelo grisalho despenteado, acara suada, a boca enorme (bocão), cheia de cacos de dentes.Infelizmente para Gerson, foi Darcy quem o chamou quando ele atingiu o pé do morro, do Rabicho, paracomeçar a subida."Hei, Gerson!" – Gerson parou e esperou.Darcy se aproximou, vagaroso,"Tá tudo bem com ocê?"Tudo estava bem."Sabe o Tetéu, rapaz? Ou melhor: soube do Tetéu? aquele seu vizinho cheio de brincos e tatuagens e mutretas?"Gerson não sabia. Ele olhou pra cara do Darcy,em silêncio. Que ele continuasse! Gerson não queria papocom ele. Não ouvindo resposta, Darcy continuou:"Pulou o muro da casa daquele velho pão-duroque mora no beco entre o boteco e o colégio na avenida.Aquele que empresta uma grana a juros altos. Mas só empresta pouca coisa, quantia pequena. Agiota pé-de-chinelo.Foi hoje, agorinha, no fim da madrugada. Sabe quem é, nãosabe? O velho não tá nem agüentando ficar em pé direito,mas, mesmo assim, sapecou um tiro no cara.""Tinha um cachorro lá e acho que ele não sabia,hi, hi! Ele pulou o muro e caiu quase em cima do bicho – eo bicho abotoou nele! Hi, hi!""Rapaz, parece que o velhote é até campeão de tiro; foi só um – PUM!, na cabeça!" – e o cara fez um gestosugestivo, apontando o dedo indicador da mão direita para ocrânio, mantendo os demais dedos dobrados, enquanto imitava o som de um estampido – "o trouxa não teve nenhumachance. A mínima! Era um bobo mesmo! Os miolos dele„stão lá, espalhados pelo chão!"As coisas tinham acontecido como o velhote contou mais tarde: "Eu sou viúvo, como vocês sabem. Viúvo eaposentado. Minha dona morreu há alguns anos; meus filhos, dois filhos, nem moram na cidade. Fico nesta casa, então; vivo sozinho, nos fundos do beco. É fundo de beco, éverdade, mas é bem conservado e a casa é boa; tem o terreiro e tá numa área central. Tá perto de tudo: farmácia, padaria, supermercado; perto de todas as comodidades. E o lota-ção pára logo na porta. Tenho tudo à mão. Então, foi assim:era fim de madrugada, umas cinco e meia da manhã. Eu tinha acabado de deixar a cama, tinha me levantado pra ir aobanheiro. É a primeira coisa que faço todos os dias. Me levanto e vou direto pro banheiro. Depois, vou à padaria.Compro um pão ou dois; tem dia que compro um litro deleite. Dá pra vários dias. Ponho na geladeira. Então, faço ascompras e fico lá, batendo papo. Só por alguns minutos.Coisas de velho. Nisso, ouvi um barulho de alguma coisapesada caindo dentro do terreiro, perto do muro. Aí, o cachorro começou a latir muito alto e, depois, parece que abocanhou alguém, que se pôs a falar alto "larga, filho de umaputa, larga minha mão, caralho!" Mas o cachorro não largoue ficou ganindo e rosnando, furioso, e acho que balançandoa mão do moço, a direita, a que estava com a arma, e eletentando se desvencilhar, dando chutes no bicho, e falando"porra, sai, caralho! Sai!" Aí, eu abri a porta da cozinha e viaquele sujeito enorme. Com o revólver. De touca ninja. E ocachorro com a boca na mão dele. Ele tava tão ocupado como cachorro, com as mordidas do cachorro, com as sacudidelas que o bicho dava, que nem me viu quando cheguei naporta. Eu fiquei muito assustado. Um rapaz de todo tamanho! Ainda tive tempo de buscar a arma e atirar nele, antesque ele desse cabo de mim. A gente vê isso nos jornais quase todos os dias: matam por dá cá aquela palha. Furtam e assaltam em qualquer lugar. Entram na casa, no comércio, dequalquer um. Até nas igrejas. E os velhos, homens e mulheres, são as vítimas preferenciais. Daí, dei um jeito de me defender. Mas foi uma fatalidade. Como poderia eu acertar umtiro numa pessoa daquela distância?! E ainda na cabeça?!Até pouco tempo atrás, cinco meses atrás, eu nem tinha umaarma. Foi idéia de meu irmão que mora na roça. Me perguntou: „moço, você tem uma arma?‟ Eu respondi: „não; não tenho‟. "O que eu faria com uma arma, a essa altura da vida?Tenho setenta e dois anos!" "Pois você vai ganhar uma. Euvejo nos jornais que os caras „stão roubando até caixas defósforos na cidade, você mora sozinho, e ainda fica emprestando mixarias a juros. Algum vagabundo pode vir a saber ecismar que você é rico. Mesmo aqui na roça tá muito perigoso". "Tá certo; é isso mesmo! Mas eu não quero arma nenhuma!" "Vai levar, sim, senhor!" "E me deu o revólver.Mas eu deixei o revólver lá uns tempos. Deixei lá no sítio.Eu nem sabia pegar naquele troço!" "Você tem um cachorro?" "Não, também não tenho". "Pois vai ganhar um. E voute dar um cachorro bem grande. Bem servido de mandíbulase de músculos. Dentro da cidade não se pode mais viver semcachorros, se você mora numa casa. A menos que você vivanum apartamento. Pior ainda você, que mora sozinho. Jáque você tem um terreiro, pode muito bem por um cachorronele." "Então, como eu vou pro sítio dele todo fim de semana, ele me ensinou a puxar o gatilho. A gente fica lá, nomeio do pasto, o dia inteiro, mirando em latas que ele põesobre os cupins. E quer saber? Atirar é gostoso, moço! É interessante. Eu acabei gostando. Mas o rapaz deu azar. Temapenas dois dias que eu trouxe a arma e o cachorro. Eu gosto de cachorros, mas não gosto de barulho de cães à noite.Eu não. Tenho o sono leve, muito leve. Por isso demorei avir com ele. Não queria o cachorro. Não queria latidos emmeus ouvidos. Mas, aí está. O bicho me alertou pra presençadele e o moço se lascou. Talvez se o cachorro não estivesselá, ele tivesse me surpreendido. Mas eu não queria acertar orapaz. De jeito nenhum! Queria só assustar ele. E este moçodevia estar mesmo precisando de grana: ele saltou por cimados cacos de vidro que mandei colocar sobre o muro. Sobretoda a extensão do muro! E este muro é bastante alto. Depois que ele caiu ferido, o pessoal que tinha sido alertadopelo tiro, o pessoal que vem cedo à padaria, tirou a toucaninja dele e viu que era este rapaz. Era conhecido. Não conhecido meu. Disseram que não era gente boa, não. Vivia detrambique, de rolos. Muita gente já conhecia ele".Darcy curvou-se um pouco na direção de Gerson,numa atitude de suposta intimidade, e cochichou: "Tetéu tava como umas conversas esquisitas! Uns papos furados,moço. Tava falando muito numa tal de „quimia‟. Disse eleque ia transformar a vida dele em ouro! Que ia voar e darum pulo no escuro! „magina! Eu acho que ele tava era pitando e cheirando as „coisas‟ demais! Tava ficando maluco!Agora ficou tudo escuro mesmo pra ele! Ele não tá enxergando nada!" – e riu, - hi, hi! - a boca enorme, bocão, cheiade pedaços enegrecidos de dentes e de cuspe.Gerson nada respondeu e Darcy lhe deu um tapaamistoso no ombro e saiu caminhando, rindo baixinho, oboné sujo enrolado nos dedos. Gerson ainda ficou estáticona esquina da rua durante algum tempo, e Olívia mais Dimas passaram por ele, nervosos, reclamando que "o dono doboteco é um filho da puta!""O dono daquela merda de boteco é um filho daputa! Nem uma pinga fiado, porra! Falô qui pra nóis elenum vende mais nem fiado nem a dinhero!""Tamém, ele tá tão na merda igual a nós. O buteco dele tá até caino pedaço!"Então, Gerson se virou e se pôs a andar. E foi subindo, aborrecido e vagaroso, em direção ao Rabicho, sob aluz clara da manhã, que caía como uma leve e intermitentechuva de ouro que algum bruxo alquimista ainda estivesseretirando de um misterioso pote mágico da madrugada quemorrera havia não muito.
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LIÇÕES DE ALQUIMIA
Short StoryLições de alquimia é um conto, ficcional, que descreve as ações de elementos que vivem uma vida marginal, mas, não apenas eles, e que pensam em viver a vida sem fazer esforço, ou seja: roubando e traficando. A heroína da história é adepta da auto-a...