Primeiro Evento

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 O telefone celular vibrou pela segunda vez. A chave errada no buraco da fechadura se recusava a entrar e se recusava a sair. O peso da sacola do mercado apertava os dedos com intensidade o suficiente para deixar sulcos vermelhos e causar dormência. Começou a garoar. Além de vibrar, o celular começou a tocar "Simply the Best". Ao invés de desenroscar com o giro mais forte, a chave torceu e se quebrou. A pressão nos dedos da mão esquerda sumiu, o fundo da sacola rasgou e as latas de cerveja desceram correndo para o meio fio, três delas pararam por aí, outras duas fizeram a curva e começaram sua jornada ladeira abaixo. Ela enfiou a mão no bolso da frente de sua camisa, pescou o celular e um milésimo de segundo antes de seu dedão apertar a tecla verde, a voz de Tina Turner parou de cantar e a mensagem "chamada perdida" apareceu na tela. A garoa se transformou em chuva. Ela jogou o molho de chaves no chão. Fez um movimento brusco com o outro braço, como se fosse jogar o celular no chão, era para ser apenas um blefe, mas o celular escorregou de sua mão molhada e se espatifou, a tampa de trás se abriu e a bateria deslizou para a pequena represa criada pelas latas de cerveja que seguravam o fluxo de água do meio fio. Ela sentou no chão molhado e chorou.

O Honda Accord preto se aproximou vagarosamente, a seta ligada. Embicou na calçada esmagando uma das latas. O portão eletrônico começou a abrir. O vidro do motorista baixou. Maria olhou uns instantes para a idosa sentada em frente à sua casa.

- Mãe! O que você tá fazendo aí fora, entre! Anda!

Ivone ergueu a cabeça, os olhos vermelhos e chorosos, balançou a cabeça afirmativamente e começou a se levantar. A sandália escorregou na calçada molhada, resultando em um pequeno tombo.

- Cuidado, mãe!

Maria desceu do carro, não se importando com a chuva que molhava seu terninho de empresária bem sucedida. Tirou os sapatos de salto, jogou para dentro do carro e fechou a porta.

- Vem mãe, eu te ajudo.

Ivone estendeu os braços aceitando a ajuda da filha. Em poucos segundos estava de pé. A filha fez menção de guiá-la para dentro da casa, mas a mãe a puxou em um abraço apertado e chorou copiosamente.

- Vamos mãe, o que aconteceu? O que aconte...

Escutaram um estrondo. Olharam na direção do barulho tentando entender o que havia causado o som de explosão, mas não encontraram a fonte do barulho. Um novo estrondo. Dessa vez, viram que algo havia atingido o carro causando uma depressão no capô.

- Mas o que é isso?

Era uma pedra de gelo do tamanho de uma bola de sinuca. As duas mulheres se soltaram do abraço e andaram rapidamente para a cobertura da garagem. As pedras continuaram a cair, não eram muitas, mas o impacto era assustador.

- Merda, deixei minha chave no carro, me empresta a sua?

Ivone enfiou a mão no bolso de sua camisa e remexeu algumas vezes no bolso vazio para então se lembrar que havia jogado a chave no chão.

- Eu não acredito. Minha chave tá lá fora.

- Não se preocupa, mãe, eu pego a minha no carro.

- Não, querida, essas pedras podem te machucar, vamos esperar passar aqui na garagem mesmo, depois entramos.

- Nã-nã-ni, mãe, você tá toda molhada! Vai ficar doente.

Maria se virou bruscamente, antes que a mãe oferecesse resistência, precipitou-se para a chuva e entrou no carro. Ali as pedras não poderiam atingi-la, estava segura. Ligaria o carro e colocaria para dentro da garagem.

O garoto virou a esquina em alta velocidade, sua capa amarela chamou a atenção de Ivone. A bicicleta derrapou e, por um instante, ela achou que o jovem iria cair e se espatifar no chão, mas ele recuperou o controle e voltou a pedalar com força. Ela viu uma pedra cair a poucos centímetros do garoto e pensou em como ele era sortudo por estar lá fora e ainda não ter sido atingido. O garoto se aproximava. Ivone foi até o limite do telhado e acenou com uma das mãos:

- Aqui! Garoto! Entre aqui!

Apesar da chuva que atrapalhava sua visão, ela pensou ter visto os dentes do rapaz, ele parecia rir, contente com o convite. Desacelerou a bicicleta e começou a falar:

- Muito obrigado, senhora, essas pedras, eu vi atingirem um homem na rua de trás ele...

Uma pedra acertou a lateral da cabeça do rapaz. Apesar do barulho da chuva, o som do osso do crânio se partindo foi mais alto. O corpo caiu como se fosse uma marionete e todos os fios tivessem sido cortados ao mesmo tempo. O sangue que escorria de sua cabeça era instantaneamente lavado pela chuva, deixando apenas um vestígio rosa.

- Meu Deus do céu!

Ivone fez menção de sair da proteção do telhado e ajudar o garoto. A chuva de pedras ganhou intensidade. Não eram mais esporádicas, caiam ferozmente. Ela desistiu, mas não teve tempo para se sentir culpada. As pedras acertavam o rapaz, desfigurando seu rosto e devastando seu corpo, ele não poderia ser salvo. E ela tinha mais o que pensar, a vida de sua filha também estava em risco.

Maria se encolhia. Os vidros dianteiro e traseiro tinham sido espatifados e a chuva invadia o carro, mas o teto conseguia impedir que os projéteis a atingissem. Ela girou a chave tentando ligar o carro, sem sucesso. Olhava para o corpo do garoto, cada vez menos parecido com um corpo e era tomada pelo terror. Aquilo não podia estar acontecendo. Ela girou a chave mais uma vez e o carro pegou. Pisou no acelerador e o carro derrapou por alguns instantes antes de tracionar e subir a rampa. Apertou o botão para fechar o portão eletrônico, mas este não respondeu ao comando. Desceu do carro com a chave nas mãos trêmulas. Abriu a porta e empurrou sua mãe para que ela entrasse primeiro. Mexeu nos interruptores, mas não havia eletricidade. 

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