Uma semana já havia se passado desde que João começou a trabalhar no cais e, desde então, não havia perdido nenhum dia de serviço. Incrível como em todo aquele tempo, nem ao menos uma vez sequer ele se lembrou da igreja que repousava atrás dele, a alguns poucos quilômetros, logo ali em cima do monte, em uma nítida posição de superioridade na qual parecia zelar por toda a capital.
Naquele dia, uma segunda-feira, João havia chegado cedo novamente para o serviço, como fizera em todos os dias desde que começara com aquela rotina. Enquanto trabalhava na descarga de víveres que partiam imediatamente aos armazéns para escapar do sol sempre forte do Rio de Janeiro; não muito distante dali, há 1 quilômetro, talvez mais ou menos, desembarcava D. Gabriel e sua comitiva. Mesmo sem saber, aquele dia seria de suma importância para ele, e por que não dizer, um daqueles poucos dias que têm a responsabilidade de poder mudar a vida inteira de uma pessoa.
Embora fosse um lindo navio e chamasse a atenção por onde passava, não representava que ali viajava uma das pessoas mais importantes do Império. Batizada de Santa Catarina, o meio de transporte era uma fragata ligeira com 200 toneladas e que alcançava com facilidade os 25 nós de velocidade. Era esguia, tinha 3 mastros enormes com várias velas brancas. A fragata só não passava totalmente despercebida devido sua quantidade de peças de artilharia. Eram ao todo mais de 20, distribuídas em duas linhas de cada lado. A bordo mais de 30 homens faziam a segurança do bispo e cuidavam da embarcação, além daqueles que parasitavam no entorno de sua eminência.
Malas e mais malas, valises e baús eram retiradas sem parar da embarcação, chamando a atenção até do mais acostumado dos carregadores. Naquele momento, inclusive, os que estavam descarregando navios ali no entorno da embarcação já tinham se dado por conta de que alguma presença ilustre estava por desembarcar. Quando foi a vez de começar a descer os passageiros, primeiro saíram os homens encarregados de fazer a escolta, depois algumas pessoas de pouco vulto e por fim, a "sua suntuosidade" – como era como conhecido por alguns de seus fiéis mais abastados e que gostavam de usar palavras difíceis para se distinguir, mesmo sem saberem o verdadeiro significado – Dom Gabriel, bispo da Diocese de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Mesmo que ele tivesse planejado um desembarque rápido e sem tumultos, sua presença era impossível de ser notada e ele logo foi reconhecido. Como consequência inúmeras reverências foram prestadas e bênçãos pedidas e concedidas naquele curto espaço de tempo em que ele se dirigiu do ancoradouro até a carruagem que já o aguardava de porta aberta. Esta carruagem certamente era ainda mais pomposa do que a fragata Santa Catarina. Ela era guiada por um elegantíssimo cocheiro – que não era Marciano, pois como veremos mais à frente, Dom Gabriel chegou de forma inesperada e Pedro não pôde mandar o serviçal ir esperá-lo no desembarque. O homem, muito emocionado, trajava vestes oficiais com as cores do império e teve a honra de beijar a mão do bispo em sinal de profundo respeito; gesto que muitos pagariam verdadeiras fortunas para ter a honra. Dentro da carruagem seguiu com ele outro homem armado com sua espada, pronto a defender o bispo fosse qual fosse a necessidade. Os cavalos certamente eram os mais belos de toda a cidade do Rio de Janeiro. Garbosos e elegantes, estes não cavalgavam, pareciam desfilar. O interior da carruagem era faustuosíssimo, todo aveludado e decorado com os símbolos do Império, da santíssima igreja e o símbolo pessoal do bispo – também inserido às pressas, pelo mesmo motivo do cocheiro –, que entre outras disposições, também podia ser encontrado nas valises e anel do figurão.
João, como dito, nada reparou em toda aquela recepção suntuosa e elegante preparada para o bispo, pelo contrário, continuou concentrado no seu serviço de descarga. Enquanto isso, ao longe, caso ele se virasse e atentasse a olhar em direção à igreja, poderia avistar subindo o morro, lentamente, o carro que levava o religioso. Contudo, como nada vira, continuou empenhado em seu serviço até o final da tarde, quando após o término, seguiu com o ritual costumeiro: pegar seu soldo, dar uma parte ao encarregado, comprar uma fruta e depois voltar à hospedaria. O dia de amanhã em breve já lhe chamaria para mais uma jornada.
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O Preço De Se Tornar Rodrigo
Ficción históricaQuando não se tem nada a perder, por que não arriscar? Afinal, para quem nada tem, qualquer pouco que for alcançado já será muito. Este é o pensamento de João, um jovem português que, no século XIX, sem nada que o segurasse em sua terra, resolve par...