Capítulo Único

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Poucos dias antes de Seu Ednando morrer, o homem já muito idoso o chamou de canto e disse:

— Um dia, Calanguinho, tudo isso será seu. – E apontou para todo o lugar. — Desde as paredes mofadas ao piso rachado.

Descrente, ele riu. Então colocou o pano de prato sobre o ombro e voltou pra detrás do balcão, servindo os homens que pediam por mais uma gelada.

Na época ele mal havia completado dezenove anos, namorava uma mulher dois anos mais velha e morava na pequena casinha que um dia fora de seus avós.

Olhando para os dias de hoje e pensando no passado, Cecíliano Freitas agradecia a Seu Ednando por ter sido o pai que não teve e ter garantido a ele e sua família, um sustento e um canto pra morar.

Cecíliano, apelidado carinhosamente de Calanguinho, herdara do velho amigo e patrão o bar que fora seu primeiro e único emprego, o Calango Frouxo. Ednando nunca se casara e nem ao menos teve filhos, por isso deixara seu estabelecimento àquele que lhe foi como cria; que cuidou, amou e até mesmo educou como se fosse seu.

Hoje em dia reformado, sem mofo e rachaduras, o Calango Frouxo era o bar mais querido daquele bairro pobre de São Paulo. Talvez pela história, que apenas escorria da boca dos mais velhos com contradições, ou talvez pelo dono, que era um homem muito respeitado; ninguém sabia ao certo o porquê do bar ser tão amado, só sabiam que amavam.

Mas a verdade é porque as melhores histórias sempre começam com:

— Foi no Calango Frouxo...

E essa é uma delas.

***

Era um sábado acalorado aquele dia, vários moradores já haviam passado no Calango Frouxo em busca de algo pra se refrescar.

Crianças de regata e chinelo remendado iam comprar um refrigerante pro almoço, adolescentes aproveitavam para comprar um salgado antes de ir curtir com os amigos. Os clientes mais fiéis, aqueles que se sentavam à mesa minutos depois do bar abrir, riam abobalhados pela bebida e conversavam alto.

Cecíliano reabastecia copos, sorria para a freguesia e abria a estufa dos salgados sempre com animação. Olhava orgulhoso para seu ganha pão e colocava um samba pra tocar só pra alegria da rapaziada.

O ritmo nunca diminuía no Calango Frouxo e aos fins de semana os três funcionários que tinha mal davam conta do recado. Por isso seu filho mais velho, Miguel, sempre dava um pulo no bar para dar uma ajudinha ao pai.

— Josepha estaria tão orgulhosa de você – dizia sempre que via o rapaz, já um homem feito e chefe de família.

Eloá, sua mais nova, também sempre o ajudava quando tinha tempo, aquele dia, porém, ficara de sair com um colega de faculdade.

Quando finalmente o céu escureceu e as luzes dos postes deixaram as ruas amareladas, o bar estava lotado. Alguns bêbados cambaleavam, casais dançavam agarrados e mulheres sambavam estonteantes.

Os olhos escuros do Cecíliano percorriam os corpos voluptuosos sem muito pudor, mas admiravam discretamente os músculos de alguns rapazes que riam e lhe pediam mais uma cerveja.

Calanguinho se sentia um refém dos próprios valores toda vez que desejava um corpo masculino. Algo em sua mente apitava dizendo que seus avós sentiriam vergonha se soubessem disso, então ele se retraía e começava uma batalha interna. O que ele era - e há um tempo parara de negar - versus aquilo que lhe fora ensinado a ser.

Seu riso fácil sumia e ele ia se trancar na pequena cozinha que havia nos fundos do lugar. Voltava só quando mandasse tudo as favas ou depois que Miguel o chamasse.

Foi no Calango FrouxoOnde histórias criam vida. Descubra agora