Júlia odeia o São João

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"Nostalgia é uma mentirosa suja que insiste que as coisas eram melhores do que pareciam." - Michelle K.

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Não havia escapatória.

Era tudo o que tinha em mente enquanto encarava da janela a rua mergulhada em cores. Vestida de palha e bandeirolas, a cidade exalava o clima junino. O céu lá em cima estava tão nublado quanto Júlia. O feriado causava na garota um efeito melancólico; até o som da gaita de seu avô parecia doer-lhe os ouvidos.

Santa Inês é uma cidadezinha esquecida, engolida pelas montanhas. Quase um ovo de tão pequena, parecia-se muito com essas cidades cenográficas das novelas. Dentro da casa amarela, Adelmário Coelho cantava baixinho no rádio antigo. Na cozinha, quentão e outras bebidas eram distribuídas entre os adultos.

As crianças reinavam na noite. Com seus vestidos enfeitados, chapéus e bigodes feitos a lápis de olho, corriam para todo lado, carregando pedaços de bolo e amendoins. Pois bem, todo o clima acolhedor esquentava o coração, mas tudo que Júlia sentia era um frio congelante mesmo usando três meias.

Foi nessa cidade que seus pais se conheceram. Naquele banco de madeira, em frente à casa, onde trocaram o primeiro beijo. Na praça, atrás da prefeitura, onde se encontravam. Eles eram felizes. Ah, eram sim. Júlia lembrava-se das conversas animadas enquanto lavavam os pratos, das risadas durante os jantares, dos olhares cheios de afeto. Seu pai costumava dizer que a coisa começou a desandar, que algo se perdeu. Mas Júlia não entendia. Como se perde o amor? Como podia acreditar quando seus pais diziam que sempre a amariam independente de qualquer coisa, se a chama que queimava em energia e era a alma da família havia se apagado?

Tudo estava mudando tão rápido. Ela mal havia entrado no ensino médio e supostamente deveria saber o que fazer com a sua vida, odiava o colchão inflável onde dormia com seu irmão nos fins de semana, já que seu pai agora vivia em um cubículo no centro, e não na casa onde cresceram. Odiava como sua mãe fingia que estava bem enquanto queimava a pipoca, a lasanha e qualquer outra coisa que tentasse preparar no micro-ondas, porque seu pai sempre cuidou da cozinha.

 — Júlia! — Tomou um susto ao finalmente notar Nestor, seu irmãozinho, que pisava com força por onde andava, só para ouvir o som que as botas de couro produziam, puxando a manga de sua blusa xadrez.

— O quê? — Resmungou chateada por ser tirada de seu transe.

— Vamo na pracinha agora? Quero ver a roda gigante, mas mamãe só vai mais tarde, com o resto do pessoal. — Seu irmão era baixinho e bochechudo, a juba encaracolada contida por um chapéuzinho de palha. Ficava a coisa mais fofa todo vestido para a festa, um bigode meio torto desenhado em seu buço. Sua pele marrom era um pouco mais clara do que a dela, mas tinham o mesmo queixo pontudo.  

— E por que eu te levaria? — Júlia ergueu as sobrancelhas, só para ver até onde ele iria.

— Porque ela disse. — Ele cruzou os braços.

— Disse?

— Disse! - Nestor batia o pé, impaciente. — Vamos! Bernardo vai levar a Maju.

— Quem é Bernardo?

— O irmão da Maju.

— Maju?

— Você saberia se saísse de casa. Minha amiga.

Júlia ouviu a mãe na fala do garoto. Seu irmão era astuto demais para os seis anos e sabia como contornar fatos para conseguir o que queria. Se deu por vencida, já que não tinha muito o que fazer de qualquer forma.

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