Capítulo 1

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Acordei em um fim de semana normal. O ar cheirava a café e mato molhado vindo da árvore na janela. A chuva fizera um estrago no dia anterior, derrubou árvores enormes na vizinhança. Ouvi leves passos na escada de carvalho, já devorada pelos cupins. Minha madrasta vinha na tentativa de me acordar.

- Já está de pé, minha rosa? - diz ela, sorrindo ao pé da porta.
- Estou sim, Ceci. - retribuo o sorriso.
- Se troque e desça para tomar café comigo. Amanda e eu estamos famintas. - ordena ela com um tom nenhum um pouco autoritário.
- Já vou.
- Aguardarei ansiosamente e morrendo de fome.
Cecília sai do meu quarto, fechando a porta vagarosamente para não ranger. Levanto-me e abro a gaveta da cômoda mais próxima. Uma camiseta de caveiras e um jeans velho serviriam pro dia de hoje. Antes de sair do quarto eu relanceio o olhar sobre a janela ao lado da minha cama. Meu quarto é um grande quadrado com uma cama encostada ao fundo e um guarda-roupa preto à frente. A cômoda se encontrava do lado esquerdo, um pouco depois da janela.
A janela é uma das coisas da qual eu mais gosto na casa. Tinha uma persiana horizontal cinza, pra combinar com o quarto morto. Uma árvore do lado dela deixava uma brisa muito boa entrar. Decidi fechar a persiana antes de descer para o café.
Tento ser cautelosa nas escadas até a cozinha, a direita. As escadas davam direto para a porta de entrada, a esquerda a sala. Segui até a mesa do café e me sentei, já esticando a mão para pegar a faca de manteiga.

- Bom dia, Bea. - cumprimenta Amanda com a boca cheia.
- Bom dia, porquinha - retribuo sorridente, pegando um pão e puxando a manteiga.

A madrasta estava com a a barriga no fogão, terminando de coar o café. O cheirinho era tão bom... A segunda coisa que eu mais gostava na casa.

- Meninas, vocês estão se sentindo sozinhas nessa casa gigante? - pergunta a madrasta, se virando para nos servir o café.
- Eu estou me sentindo um pouco. - comenta Amanda.
- Eu me sinto às vezes. - comentei também. Senti uma pontada no coração quando soltei essas palavras.
- Então vocês vão gostar dessa notícia: - ela faz uma pausa - Vou adotar dois garotos!
- O que?! - solto o pão e me sobressalto ficando de pé.
- Isso é ótimo! Menos tarefas e mais gente para dividi-las - alegra-se Amanda.
- Por outro lado também vai ter mais bagunça. - reclamo.
- Você só vê o lado negativo das coisas, parece até que vai morrer por causa disso. - diz Amanda.
- Quem vai morrer agora e você, sua vagabunda!

Pego a faca de manteiga e aponto para Amanda. Ela levanta os braços assustada, mas logo se defende segurando minha mão contra a mesa frágil. A faca se solta quando Amanda quase quebra o meu braço. Ela se apodera do objeto cortante e se estica para colocá-lo em meu pescoço.
- Parem com isso agora! - grita Ceci, nos segurando com as mãos.
- Não quero mais comer, vou pro meu quarto.

Empurro a mão de Amanda contra a mesa e ela urra de dor. Eu subo as escadas pisando forte. Quase escorrego no percurso do meu quarto.
Mais tarde, naquele mesmo dia, estava na minha cama encolhida e pensando na minha família, na minha verdadeira família. Eu nunca voltarei a vê-los. Minha mãe estava frágil quando fui levada, minha irmã era uma drogada e meu pai estava morrendo de câncer. Cecília me parecia ser uma saída tão boa em tempos de desespero. Sentia as lágrimas escorrendo no meu rosto, aquecendo minhas bochechas frias. Enquanto adormecia segurei um último porta retratos que sobrara, uma última lembrança boa.

Algo toca estridentemente na escrivaninha na frente da minha cama. Meu celular vibrava loucamente em cima da madeira. Era uma chamada de um número desconhecido, decidi atender.
- Alô? - atendo.
- Oi Bea, é o Miguel. - diz o cara com a voz grave do outro lado do telefone.
- Que número é esse?
- Da minha - ele faz uma pausa pensativa - prima.
- Por que demorou pra me responder?
- Pensei que tinha alguém me chamando.
- Não ouvi ninguém te chamando.
- Vai na escola amanhã? - disse Miguel rapidamente. Era perceptível sua vontade de mudar de assunto.
- Vou sim.
- Te vejo lá. Tchau!
- Você me ligou só pra... - ele desliga.
Parece que todo mundo está diferente. Ouço o som da minha barriga roncar e vejo que já escureceu. Desço para a cozinha e um cheiro maravilhoso de macarrão abusa das minhas narinas.

- Que cheiro ótimo. - comento.
Amanda estava cozinhando. De costas para mim, ela se abaixava para pegar o escorredor. De repente Amanda se vira, parecia assustada. Ela levanta um sobrancelha.
- Você está me elogiando?
- Sim. Qual o problema?
- Esquece.
Ela se vira novamente para o macarrão. Eu pergunto:
- Onde foi a Ceci?
- Trabalho no orfanato.
- Tudo bem - suspiro.
Me sento no sofá esperando o macarrão ficar pronto. Ceci adora ir para o orfanato, acho que é pelo fato de não poder ter filhos e ter milhões para gastar. Ela gosta muito de crianças e adota várias, devo ser a sétima ou oitava.
O macarrão ficou pronto e comemos. Subi para meu quarto, tinha que me arrumar para a escola. Separo meu uniforme, material e por fim minha maquiagem escura. Adorava fazer o estilo gótica, uma coisa que Ceci odiava. Ela dizia que os góticos eram bêbados depressivos.
Me deito na cama com meu pijama de unicórnio e logo pego no sono com o escuro e o adorável som da chuva. Tive meus pesadelos corriqueiros, acordei e dormi três vezes. Um a menos do que ontem.

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⏰ Última atualização: Aug 06, 2016 ⏰

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