Girassol

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O mundo estava pálido. Não que isso fosse exatamente uma grande surpresa, pois naquele pequeno pedaço de mundo era sempre assim. O sol lutava para passar por entre as nuvens e emitir algum calor sobre a terra gélida, os pequenos flocos de neve dançando uma valsa sem som. Os pinheiros, cobertos de neve. O Grande Rio, congelado. Os animais, os pequenos animais, quase não existiam mais.

Observando a paisagem do congelante parapeito da janela, a pequena menina tremia de frio. Em momentos anteriores, fora das mais belas; com seus cabelos dourados e esvoaçantes, suas maçãs do rosto coradas e sua delicada pele pálida, quase tão branca quanto os campos nevados do lado de fora da janela. Agora, sua beleza se esvaíra. Seus cabelos estavam escassos e quebradiços, seus olhos com crateras fundas de noites sem dormir. A pele, antes perfeita e bem cuidada, assumia um tom amarelo e doentio.

Vestida apenas com a fina camisola que o hospital fornecia, era um trabalho árduo sobreviver naquele inverno eterno. Mas ela conseguia. Mesmo tremendo, continuava observando a paisagem tão conhecida. Gostava de observar sua antiga vila. As pequenas casas ao longe, cobertas de neve, pareciam casinhas de brinquedo. Pequenas luzinhas brilhavam, dando um ar natalino desnecessário. Ela procurava, todos os dias, algum sinal de que o verão estava retornando. Lembrava-se, ainda, de quando a vila nevada era o paraíso do verão. As pessoas riam e saíam na rua sem motivo, apenas para apreciar o clima. Mas, três anos atrás, o inverno chegou. E nunca mais deu espaço para o resto das estações.

O clima começou a ficar frio na mesma época em que foi internada. Seus amigos, subitamente, desapareceram. Muita lição de casa, o hospital era muito longe... pelo menos foi o que disseram. Ela escolheu acreditar, mesmo reconhecendo o pequeno franzido nos lábios da amiga, um sinal de mentira que apenas ela conhecia. Estaria completamente solitária, se não fosse o franzino urso de pelúcia que sempre carregava nos braços. Passara da idade de acreditar que possuía vida própria, mas era de grande ajuda mesmo assim.

Terminando sua busca, retirou-se do parapeito e deitou-se em sua cama, formando um casulo com os lençóis ásperos. A pequena esperança que alimentava todos os dias foi destruída novamente, como uma pequena vela se apaga perante qualquer sopro, por mais leve que seja. Sabia o que deveria fazer, é claro. Levantou-se com muito esforço e abriu a porta do quarto, as pequenas mãozinhas lutando para mover a maçaneta pesada.

Observou o corredor em que se encontrava. Idosos carregando seus carrinhos de soro para lá e para cá, enfermeiras ajudando pacientes e visitantes perdidos e uma pequena criança chorando. Muitas pessoas precisavam passar por aquele corredor, era o único meio de passagem entre os dois prédios do hospital. Era, também, o andar mais triste de todos, abrigando todos os pacientes com chances nulas de serem curados. As enfermeiras dali eram mais treinadas; as pessoas, mais cuidadosas. Naqueles quartos moravam idosos incapacitados, doentes com estágios extremamente avançados de doenças como câncer, pessoas vivendo a partir de máquinas. E ela.

Possuidora de uma doença terminal, ninguém sabia o que fazer com ela. Os médicos optaram por muda-la para aquele andar, conhecido como Corredor das Almas, e apenas esperar até que seus sistemas começassem a falhar, até que não pudesse mais mover os braços e pernas. Chegara ao ponto em que apenas se mover era uma missão impossível, e mesmo assim se forçava a caminhar pelo corredor. Queria, nem que pela última vez, chegar ao jardim.

Desceu as escadas e, ofegante, sentou-se no banco coberto de neve do jardim. Estava cansada. Muito, muito cansada. Juntando toda a força nas pernas, levantou-se e começou a caminhar. O jardim era, definitivamente, seu lugar preferido. O hospital conseguiu, de alguma forma, cultivar árvores ali. Plantas, tantas plantas que ela adorava. Costumava sentar ali por horas a fio, apenas observando as plantas, as folhas. Era uma observadora, apesar de tudo. Caminhou até o centro, onde, ali escondidinho, estava um pequeno pedaço de terra baldia. A menina pegou o minúsculo regador azul, encheu até a metade com água e regou o solo, na esperança de que um dia a semente que plantara ali finalmente brotasse.

Seu trabalho estava feito. Sentou no chão para descansar e perdeu o controle total das pernas. Deveria ter se acostumado, mas simplesmente não podia. Era uma sensação completamente desesperadora, querer levantar e não conseguir. As pernas eram dela, deveriam obedecê-la. Começou a chorar silenciosamente, seu silêncio controlado lentamente se transformando em um berro seco. Alguém a ouviu, pois logo dois enfermeiros a carregavam de volta ao quarto. A anestesia que lhe foi dada no caminho doeu, mas logo surtiu efeito. A dor passou e o mundo começou a dar piruetas. Odiava quando a drogavam.

Acordou em sua cama, com o urso apoiado na cabeceira. Agora, não tinha mais nada que a prendesse aqui, já completara seu trabalho. Não aguentava mais sua pobre realidade, com os amigos ausentes e pais covardes, sem coragem suficiente para visita-la. Lentamente, escorregou os dedos por baixo do colchão, até encontrar um pequeno copo descartável. Teve a ideia meses antes. Com muita técnica, durante meses escondeu dos médicos que não tomava os comprimidos receitados. Escondia-os na boca e depois os guardava naquele pequeno copo. Eram pílulas muito fortes, e tinha uma grande quantidade delas. Encheu um copo com água da torneira e tomou-as, uma a uma. Com o corpo tão fraco, provocar uma overdose não era tão difícil.

Provavelmente eram apenas alucinações resultadas do uso das drogas, mas ela viu. Viu as nuvens lentamente se abrindo, a cálida luz do sol dando cor ao mundo. O céu ficou azul, a neve lentamente derreteu. Ela podia sentir, enquanto suava, os corações de todos os pacientes do Corredor das Almas. Corações antes frios, preenchidos com dor e desespero, se encherem de luz e esperança. E, ao mesmo tempo em que sua alma escorregava do corpo, a pequena flor que plantara brotou. Era um pequeno girassol de pétalas douradas.

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