Era uma sexta feira como outra qualquer. Ele acordou, com um misto de preguiça e felicidade pela semana finalmente ter chegado ao fim. Deu-se ao luxo de iniciar o dia com um belo cappuccino enquanto se vestia, atrasado como sempre. Calça. Camisa social. Cinto. Gravata. Sapato. Blazer. A cada peça de roupa posta olhava para as luvas da academia jogadas sobre o criado mudo e pensava 'preciso voltar'.
Mas não hoje. Essa noite teria um gosto diferente - ao menos era o que a ansiedade o levava a pensar. Completamente perdido na crise dos 'vinte-e-poucos' via-se perdido em um turbilhão de pensamentos e indagações. Entre casamentos de uns e chás de bebê de outros ele se esquivava e levava a vida da forma que queria, mas pagava o preço de nem sempre estar com os melhores amigos.
Enquanto saía de casa, olhou as fotos das festas com os amigos em cima da mesa e pensou 'preciso envelhecer'. Mas não hoje.
As 8 horas do expediente arrastaram-se como se durassem uma semana completa, mas finalmente as 18h chegaram. Estava leve, finalmente voltaria àquele bar que tanto frequentava há uns anos, mas dessa vez com caras novas, mais jovens, e com tanta necessidade de liberdade quanto ele.
Abriu a noite com seu flambado favorito, sentia-se livre, desinibido, voltara a um lugar ao qual jamais deveria ter se permitido sair. Entre uma música dos Smiths, que o lembrou da formatura da faculdade, e aquela do Pink Floyd que cantou abraçado com seu pai naquele show, ele avistou aquela criatura fluindo levemente pela pista. As tatuagens coloridas contrastando sobre a pele muito branca rapidamente chamaram sua atenção.
'Por que não?', perguntou-se e rapidamente aproximou-se da menina enquanto entoava versos de Tempo Perdido que a banda tocava no momento. A conversa fluiu melhor do que ele esperava, pois via a si próprio naquela menina morena dos braços rabiscados a cada vez que ela dizia 'há meses não fazia isso, estava sentindo falta já'.
Após vários minutos de conversa foram até o bar e daí em diante a noite toda virou um breu. Acordou já era dia, em um quarto inicialmente desconhecido. Quando finalmente despertou, reconheceu o quarto de seu amigo e sentiu-se mais tranquilo. Ao virar para o lado, lá estava ela, nua e reluzente no sol da manhã, dormindo da maneira mais suave possível.
Ao pegar o celular verificou que estava totalmente atrasado para aquele almoço onde conheceria a filha recém nascida de seu amigo, que vinham adiando há semanas. Mas não tinha coragem de acordar seu mais novo problema. Decidiu então deixar um bilhete ao lado da cama.
'Bom dia, você vai me achar um babaca por ir embora assim, mas eu tenho um compromisso inadiável. Amei a noite de ontem e quero me desculpar depois por esse vacilo da manhã. Me mande uma mensagem, se você quiser. Beijos, livro de colorir'
Achou ridículo o final do bilhete, mas lembrou de tê-la chamado assim a noite toda e achou que seria bom um pouco de humor.
Bebeu 1 litro de Coca Cola no café da manhã para espantar a ressaca e tomou o banho mais rápido de sua vida. Enquanto acertava a barba em frente ao espelho e terminava de se arrumar constatava que os 18 anos ficavam cada vez mais distantes.
Foi quando seu celular acendeu em uma mensagem. 'Não gostei de você ter saído assim, mas entendo seu lado. Acho que vou te dar uma outra chance, talvez hoje. Me liga quando você estiver livre. Beijos do livro de colorir'.
Abriu um largo sorriso, olhou para seu reflexo no espelho com a ressaca estampada no rosto, para as fotos no quarto e disse a si mesmo em voz alta 'preciso envelhecer, mas não hoje'.
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Mas Não Hoje
RomanceNas idas e vindas da vida, assolado pelo ritmo louco do dia a dia, percebemos que as melhores coisas estão nas atitudes mais espontâneas que temos.