[Conto de Junidades]

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Junidade (ju.ni.da.de) 1- substantivo abstrato inventado pela autora do conto 2- coisa junina 3- ocorrências de uma festa junina especial

— Por favor, vó — peço, quase saltitando ao seu redor pela cozinha amarela.

— Ah, menino — ela me lança um sorriso compassivo, mexendo uma tigela com massa de bolo de milho — Leléu, sua avó não serve mais para essas coisas. Por que você não vai acompanhado do seu namorado, aquele menino ótimo?

— Ele viajou, lembra? — ergo os ombros, sorrindo levemente ao me lembrar das fotos que Xavier vinha me enviando, às escondidas, do projeto do programa governamental que estava ajudando a formular, como uma espécie de estágio — E hoje já é sábado, ninguém aceitaria um convite de última hora para ir comigo.

— Diga que sua avó já está ficando gagá, se quiser — diz dona Matilde, colocando as mãos na cintura, com um sorriso divertido no rosto — Mas pelo que eu me lembre também havia aquela outra mocinha adorável, amiga sua, para te acompanhar. Qual é o nome dela, mesmo?

— É Natália, vó. Mas a Nat me assusta, não me deixe sozinho com ela — brinco, a abraçando pelos ombros — Por que a senhora não pode ir?

— Não é nada — vovó hesita, despejando a massa de bolo em uma assadeira com cautela — Eu só quero ficar em casa, apreciando a noite quieta, talvez lendo um livro...

— Mas isso acontece todos os dias, como a senhora poderia querer uma cidade mais pacata do que São José do Barreiro? É só uma festa junina provinciana, vovó — falo, sorrindo — Nós vamos!

***

Estou procurando por uma camisa  — que não esteja mais justa do que os macacões da Miley Cyrus, por favor — no armário de meu antigo quarto, quando vejo botas de combate cruzando a rua por baixo da cortina azul , e logo posso ouvir três batidas determinadas na porta.

— Unicórnio, abre essa porta — chama Natália (só pode ser ela) do lado de fora.

— Que espécie de vocativo para a minha pessoa é esse? — abro a porta, revirando os olhos para minha amiga.

— Ah, olá, Natália — sauda minha avó, quando percebe quem está na porta, ajeitando o casaco de lã no espelho do chapeleiro antigo do corredor.

— Oi, dona Matilde — Nat sorri para vovó conseguindo a proeza de não parecer tão insana quanto realmente é — Leopoldo, que espécie de coisa é essa digo eu! Sei que agora você tem todo esse tanquinho de Clark Kent e quer iludir as meninas que te desprezaram antes... Mas o seu namorado sabe disso? — ela arregala os olhos, soltando uma gargalhada alta ao me ver vestido com uma camisa xadrez antiga que era minha preferida; agora, entretanto, digamos que somente os botões da gola e dos punhos parecem estar no lugar certo.

— Eu não era desprezado, tá? Sempre joguei no mesmo time de vocês — digo, tentando tirar a camisa sem maiores estragos.

— Esse menino sempre foi meio esquisito, falei isso no dia em que nasceu — resmunga a vizinha, ouvindo nossa conversa enquanto varria a calçada, e Nat revira os olhos em uma coreografia conjunta com vovó.

— Bom, vamos? — falo, dando um sorriso de lábios apertados.

***

— Por que nós viemos? Por que eu quis vir? — questiono para Natália, enquanto minha avó conversa alegremente com algumas amigas na barraquinha de maçã do amor — Só tem gente que me odeia ou despreza nessa festa — digo, observando todos os bons e velhos rostos conhecidos do traumático ensino fundamental.

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