Prólogo

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Por onde posso começar?...



Bem, se você que está lendo esse texto e acredita que aqui vai encontrar algo que diga que o mundo é um lugar alegre e lindo repleto de coisas boas e onde a esperança flui pelo ar como as nuvens no céu, feche isso agora e vá assistir a um programa qualquer de TV.


Não gosto e nem nunca gostei de conversar com pessoas alienadas de pouco intelecto e sem personalidade. Não é nada pessoal. Acredite! Só estou poupando o meu tempo e o seu também.


Se chegou até esta linha é por que não se encaixa no grupo citado acima... ou então é curioso demais para parar certo? Mas te digo desde já que a ignorância é uma benção. Uma benção com o qual eu não tive a sorte de nascer.


Prometo que não vou te assustar muito, mas saiba que este é um caminho sem volta, pois quando eu abrir seus olhos, você verá que o mundo não é nada do que você pensa e que qualquer conceito estabelecido até agora pela sua mente frágil não passa de mera ilusão. Agora, é melhor se sentar... Pois aqui vai o início do meu fim.


Há muito tempo atrás, quando eu ainda era nada além de uma criança estranha e de poucos amigos, ou nenhum, eu procurava um conforto para minha alma e algo que desse um pouco de paz ao meu espírito, coisa que eu encontrei na biblioteca municipal a dois quarteirões de onde eu morava.


Você pode pensar que tudo isso é muito utópico para alguém de 5 anos achar e que uma mente infantil é fácil de se agradar, não é? Pois está enganado. Quando se mora num orfanato por que seus pais te abandonaram na rua e você vê todos ao seu redor serem escolhidos para novos lares enquanto você continua a esperar por alguém que não pense que você é estranho e quieto demais, um pouco de leitura é algo realmente fascinante. Era através dos livros que eu viajava para terras distantes, conhecia monumentos antigos, tocava a riqueza proibida pelo tempo e muitas coisas mais. Foi ali que eu construí um mundo só para mim.


Eu lia de tudo, passava horas e horas visitando as seções como um cavaleiro que desbrava novos reinos. Literatura juvenil, contos de fadas, suspenses, política, arte, história e até filosofia, mas não estamos aqui para falar da minha sede por conhecimento e sim de como isso me levou a estar aqui hoje.


Era uma tarde chuvosa de outubro, as folhas cobriam o teto abobadado da biblioteca e haviam poças de diversos tamanhos nos degraus da entrada principal. Lá dentro o cheiro de papel com um leve toque de bolor fazia com que eu me sentisse com os pés mais firmes no chão. Eu pendurei o casaco no cabineiro e então cumprimentei a senhora Hastel. Ela era uma senhora de cabelos grisalhos e de boa postura que sempre usava cores neutras como bege, marrom preto e branco, mas havia um toque pequeno de cor nos tecidos de suas roupas que apenas olhos observadores como os meus notariam. Certo dia ela mantinha a mão por debaixo da mesa de bibliotecária quando notei que havia uma fita cor-de-rosa enrolada em seu pulso. Ela não era de falar muito e eu preferia assim já que queria apenas o barulho do silencio entrando pelos meus ouvidos.


Quando a chuva voltou a cair de maneira mais intensa eu já estava sentado no chão da seção de mistérios terminando um livro que falava sobre um detetive e sua busca por vingança do assassino de sua família, no fim ele acabava descobrindo que o assassino era uma outra personalidade dele mesmo que tomava conta de seu corpo. Algo estranho para uma criança de 6 anos? Eu discordo.


Eu havia levantado para guardar o livro e procurar um novo quando um raio brilhou janela a fora e fez com que as luzes piscassem dentro do prédio. Ergui a cabeça e olhei para cima parado no mesmo lugar. Os querubins que voavam pelo céu azul e dourado pintado no teto ainda estavam ali sorridentes e tão imóveis quanto eu, durante a distração um livro mais ao fundo caiu e bateu contra o carpete cinzento do chão fazendo com que eu despertasse. Olhei para os dois lados e então caminhei em direção a ele, sua capa era de uma cor vinho escura e sem nenhuma gravura ou caligrafia elaborada, as páginas eram visivelmente amareladas o que indicava que aquela era uma obra antiga, era suficiente pra me aguçar minha curiosidade.


Quando toquei o livro senti um pequeno choque percorrer meu corpo e arrepiar os pelos da minha nuca, o que me fez recuar a mão imediatamente. Voltei a olhar para os lados e então peguei o livro e o girei na mão, me sentei no chão novamente e encostei as costas na parede de cor creme onde a tinta começava a descascar. Abri o livro e li em voz baixa os versos em letra rebuscada na primeira página.



"De um ponto a outro

Entre mundos eles habitam

Como prata e ouro

Noite e dia se evitam

Céus e terras dançarão

Em harmonia total

Um toque ou uma benção

Até que chegue o juízo final."


Engoli em seco e a chuva lá for aumentou, segui os olhos pelas páginas daquele livro e o que descobri foi bem assustador. O livro contava uma história antiga de uma rixa entre anjos e demônios para ver quem exercia o poder real sobre a terra e o mundo humano. Haviam imagens e centenas de classificações para ambos os lados, esquemas de máquinas estranhas e planos de combate. Também estavam presentes marcas, e símbolos de invocação, selo de comunicação com o "plano superior" e o "plano inferior" além dos mapeamentos de lugares específicos para rituais. Em um certo trecho histórico, era possível ler sobre um tratado feito para manter a paz entre eles, no documento timbrado dizia-se que ao nascer de uma nova alma humana, ela receberia um traço característico de um dos dois lados, a benção dos anjos, ou então, o toque dos demônios, e assim a terra serviria de experimento para que o controle fosse divido e exercido em completo equilíbrio. Haviam ainda nomes das criaturas aladas e de guerreiros que marcaram seu nome nas pedras celestiais, algo que era quase como um ritual sagrado em ambos os mundos.

Eu fiquei ali folheando as páginas até a hora que a senhora Hastel apareceu para me mandar para a casa, guardei o livro na prateleira e me levantei relutante. Enquanto andava eu não tirava os olhos da lombar cor de vinho que parecia ficar mais clara quanto mais eu me afastava. Naquela noite, deitado no beliche do segundo andar de orfanato Dreamishes eu sonhei com uma guerra entre anjos e demônios onde espadas e escudos se chocavam eternamente ao longo do campo de batalha.

Quando voltei à biblioteca no dia seguinte eu não achei aquele livro.  A senhora Hastel não apareceu naquele dia, então perguntei para a bibliotecária substituta sobre o exemplar e ela disse que não havia nada nos registros.


Eu nunca mais achei aquele livro.


Mas suas páginas permaneceram gravadas à ferro em brasa na minha mente...   

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