Para onde vão os personagens depois que morrem?

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Sempre achei que toda história merece ser contada. Seja boa ou má. Sou fiel defensor de que se há algo que dá sentido às coisas que fazemos nessa vida, é poder compartilhá-las com outros. E embora ficção seja ficção, em cada personagem – seja de carne e osso, metal, silício, ou apenas osso – vive um pouco da essência da humanidade e, principalmente, do próprio autor. Sempre soube que aquilo que me transformou num escritor era a sensação de poder proporcionada pelas palavras e pelo mundo construído em torno delas. É como ser o Todo-Poderoso particular em um universo paralelo. Os personagens estão lá, vivendo em seu estado de natureza e você escolhe se vai ser Rosseau ou Hobes, podendo dar origem ao amor ou à carnificina (muitas vezes, os dois). Você pode modificar a morfologia do natural e transformá-lo no inimaginável em um pressionar de teclas ou esfregar de borracha. Sem dó ou piedade, porque nada (e tudo) existe.

Mas chega de blábláblá porque eu tenho uma história a contar. E como toda a história (se é boa ou não, não cabe a mim julgar), merece ser contada...

Quando eu era jovem, no auge de minha elegância e arrogância (fui daqueles que anda com uma caderneta para anotar qualquer ideia que surgisse em qualquer situação, com medo de que a essência da escrita pudesse, algum dia, me fugir sem deixar vestígios), descobri um aplicativo de smartphone (tecnologia antiga, crianças). Wattpad era o nome. Um programinha inteligente, que vinha ganhando certa notoriedade – nunca como os downloaders de pirataria e jogos gratuitos que em uma semana imploram pelo seu cartão de crédito; mas aquele possuía usuários diferenciados. Em sua maioria eram leitores e escritores independentes com suas ideias fervilhando, sedentos pela oportunidade de reconhecimento – como eu era.

Recém eu dera boa noite (daqueles enfeitados de corações, como fazemos quando jovens) para minha namorada quando senti o leve peso metálico de meu celular vibrar. Era Pedro. A claridade do celular ofuscou meus olhos já acostumando com a escuridão do quarto. Já dormiu? Você precisa checar isso. Descobri esse aplicativo por acaso. Acho que pode te interessar tanto quanto a mim.

Não sabia do que tratava o tal aplicativo, naquele momento, mas sabia que meu amigo não era do tipo que gostava de incomodar naquela hora sem um bom motivo. Copiei o nome que ele havia me enviado e segundos depois já tinha feito o download do aplicativo. Pressionei na letra W dentro do quadrado laranja e aguardei. Não consegui ver o logotipo por mais de meio segundo...

Onde eu estava? Tudo tinha acontecido rápido demais. Meus olhos demoraram a acostumar com a arrebatadora claridade e a sensação de tontura me fez pensar que eu iria vomitar. Finalmente abri os olhos, e o que se seguiu me marcou para sempre. Eu estava no alto de uma montanha. O sol cintilava imponente no céu acima e pincelava as nuvens com sua onipresença no espaço. Ao fundo mais montanhas, salpicadas em seus cumes com brancas e espessas camadas de neve, que cobria parte da relva verde vívida que descia atrás de mais montanhas. Ainda lembro do azul do céu e do aroma de terra úmida. A paisagem me fez lembrar algum cenário de romance epopéico da nova era. E como que para complementar meu pensamento, lá embaixo, onde o vale era margeado por um estreito riacho de águas transparentes, vi povos guerreando. Não sei se eram europeus, africanos, medievais ou primitivos. Tampouco sei se eram humanos. Pois do modo como ali cheguei, ali deixei de estar.

Tive novamente aquela sensação de tontura, mas dessa vez não pensei que fosse vomitar, eu o fiz. E assim que levantei a cabeça e me recompus – ainda sentindo aquele desconforto quente em minha boca – percebi que estava em outro lugar. Era claro ali, não claro como antes, mas se via certa claridade através das nuvens. Senti um toque gelado em minha pele e uma leve brisa contra meu rosto. Estava chovendo. Identifiquei logo onde estava. Nunca tinha ido a Nova Iorque, mas não precisava ser perito pra identificar os táxis amarelos e a iluminação do Central Park. A sete ou oito metros longe de mim havia um casal. O rapaz ajoelhado aos pés de uma linda moça, estendendo-lhe um lindo anel, enquanto essa tentava, sem sucesso algum, conter as lágrimas. Uma explosão de aplausos foi ouvida aos fundos quando ela falou I do! O que se seguiu eu não posso contar, pois já não estava mais lá para ver.

Senti que aquilo – seja lá o que estivesse acontecendo – acontecia novamente. Curioso, a partir dai apenas me deixei levar.

Meu próximo destino foi em uma bonita cidade margeada por um lago, e lá vi hordas de vampiros e humanos em guerra. Depois presenciei com fascínio a chegada do homem à Lua – não era a primeira, porque lá já havia outros homens, colônias da nossa espécie para ser preciso. Dali contemplei nosso pequeno planeta azul, e antes de conseguir pensar em como eu estava respirando sem oxigênio minha viagem já tinha tomado outro destino. Em algum cassino luxuoso de Vegas, agora, alguém estava em seu dia de sorte – tanta sorte que chamava a atenção do gerente, e como eu imaginei, aquilo não poderia acabar bem. Mas não estive lá para ver, pois havia outros lugares a estar. Conheci elfos que habitavam árvores e dragões dantescos (alguns amestrados, eu juro), estive presente com certo rubor enquanto casais copulavam e escondido no armário enquanto via uma família inteira sendo brutalmente assassinada.

Descobri então, que eu também podia sentir a dor e o prazer de todos aqueles seres. E eu senti. Descobri que podia me tornar cada uma delas. E me tornei. Estive nos dois lados da batalha, lá embaixo do vale. E então retornei e fui o homem de joelhos no Central Park. E fui sua noiva chorosa. Por um tempo fui cada um dos habitantes da colônia lunar, e temi as criaturas que lá viviam. Fui lobisomem, vampiro, o matador e o domador de dragões. Fui Deus e o próprio Diabo. Fui o assassino e a própria vítima. Senti a loucura pulsante e o desespero gelado. E pouco antes de puxar o gatilho em minha própria cabeça pensei: pra onde vão os personagens depois que morrem?

E hoje, depois de tantos anos, ainda não sei se encontrei resposta para aquela pergunta. Mas quando acordei naquela manhã e vi o celular ligado em minha mão, já quase sem bateria, e os doze capítulos escritos (teria eu lido algo sobre cassinos e a lua?), soube que eu estava disposto a passar minha vida toda procurando.

Para onde vão os personagens depois que morrem?Where stories live. Discover now