Minha vida não é nada fácil. Tenho que enfrentar muitos obstáculos para chegar aonde eu quero. Sei que muitos vão pensar "Ah, mas eu também enfrento muitas coisas para conseguir o que quero", mas somos diferentes, pois sou cadeirante.
Minha vida era como a sua, corria de um lado para o outro, não dava importância a tudo aquilo que tinha acesso, até que um acidente me fez ver tudo que passava despercebido diante dos meus olhos. Era uma tarde de domingo quando estávamos a caminho da casa dos meus avós maternos. No carro estavam meus pais, Ana e Fernando e eu. Estava tocando algo no rádio, mas eu não estava ouvindo, já que havia colocado meus fones de ouvido. Não me recordo direito o que aconteceu, pois no momento eu estava observando a paisagem e só ouvi gritos. Quando olhei para frente, vi que um caminhão estava vindo de encontro ao nosso carro e não dava para meu pai desviar dele, visto que a nossa direita havia um penhasco. Então, só restava esperar o inevitável.
Depois disso, não me lembro de nada. Acordei em uma maca de hospital um dia depois do acidente, e soube dos detalhes através de uma enfermeira, que me contou. Ainda entubada e sonolenta, perguntei pelos meus pais, olhei para o rosto lívido da senhora que cuidava dos meus curativos após a minha indagação e já senti que algo estava errado. Meu coração acelerou e tentei por diversas vezes sair dali correndo, mas não conseguia me mexer da cintura para baixo. Pensei que fosse efeito colateral dos remédios ou coisa do tipo, mas depois o médico veio me dizer que, com o impacto dos carros, eu tinha lesionado a medula e estava paraplégica.
Naquele momento, não acreditei no que o médico estava me falando e comecei a chorar, perguntando onde estavam meus pais. A enfermeira que assistia a tudo segurou minhas mãos e disse para eu ser forte. Foi o suficiente, ela não precisava dizer mais nada, meus pais se foram. De uma única vez perdi meus bens mais preciosos e minha liberdade. Pedi para ficar sozinha no quarto e quando todos saíram chorei, não querendo acreditar que tudo aquilo era verdade. Mesmo sabendo que seria impossível, tentei sair da cama. Sentava-me e tentava mexer as pernas, mas eu nada sentia, olhei para a cadeira de rodas que estava no canto do quarto e simplesmente chorei novamente.
Fiquei internada alguns dias e sempre alguém vinha me visitar, trazer roupas e conversar, mas nada fazia com que aquele espaço dentro de mim fosse preenchido. Quando tive alta, fui para a casa dos meus avós maternos e lá eles cuidaram de mim. Eu dependia deles para tudo: tomar banho, deitar; trocar de roupa. Alguém sempre tinha que estar à disposição para fazer algo por mim e isso me deixava impaciente, visto que eu era independente antes do acidente. Até que um dia, decidi por fim no luto, conversei com minha avó Marta e meu avô João e disse-lhes que queria voltar para a minha casa, queria minha independência de volta. No início eles não concordaram, mas depois viram que era o melhor pra mim.
Quando regressei à minha casa, notei que muitas adaptações deveriam ser feitas para que eu pudesse viver bem. No entanto, em cada compartimento eu me lembrava dos meus pais, e em cada canto via suas fotos sorridentes, pois era assim que eu lembraria deles, um casal que sempre estava de bem com a vida. Respirei fundo e comecei a pesquisar por marcenarias perto da minha casa que pudessem fazer algumas rampas para que eu pudesse trafegar sem dificuldades. Depois, com a ajuda de uma amiga, Sara. fomos à uma loja de construção e compramos corrimões para o banheiro e tantas outras coisas. Em um pouco mais de um mês minha casa estava com a minha atual cara, mas sem perder a sutileza empregada pela minha adorável mãe.
Apesar de todo o meu esforço para adaptar o ambiente em que vivo, fora do meu lar a realidade é outra. Os cadeirante têm muitas dificuldades como, nos meios de transportes, nas ruas ou em estabelecimentos comerciais. Em vários desses lugares não há acessibilidade. Logo no início, quando voltava a minha rotina, dependia do transporte coletivo e enfrentei diversas dificuldades para ir a qualquer lugar. Esperava muito tempo para vir um ônibus adaptável para mim e por diversas vezes o aparelho não funcionava e eu tinha que ser erguida por cerca de quatro homens para me colocarem dentro do ônibus. Ficava realmente irritada quando isso acontecia, pois me esforçava ao máximo para não ter mais que depender de outras pessoas para coisas simples. Resolvi, então, fazer aula com um carro próprio para mim, adaptado, já que eu tinha a carteira de habilitação.
Quando tudo estava voltando ao normal, pesquisei centros de reabilitações para que eu desse início às sessões de fisioterapia. Como eu tinha as noite livres, procurei também uma faculdade para voltar a estudar, fiz o vestibular e consegui uma bolsa integral, para o curso de música, que sempre foi minha paixão. Apesar disso tudo, sentia que eu poderia fazer mais alguma coisa, foi quando me escrevi em uma academia e comecei a malhar os membros superiores, e assim preenchi o meu tempo ocioso.
Na primeira semana indo para a academia, notei que meu professor, Gustavo, me olhava de uma forma diferente. Não com um olhar preconceituoso, mas sim de admiração. A essa altura do campeonato eu jamais imaginaria que pudesse voltar a me relacionar com alguém, ainda mais uma pessoa que não era cadeirante. Mesmo assim correspondia aos seus olhares, até que um dia ele me convidou para sair e, claro, eu aceitei. Ele me pegou em casa e fomos a um restaurante, onde nos deliciamos com os pratos e com a presença um do outro. Saímos para conversar um pouco e falar um pouco mais de nós, sem os papos de academia, e foi delicioso, cada momento que passamos juntos. Isso aconteceu diversas vezes, aos finais de semana, até que o pedido foi feito. "Quer namorar comigo?", ele disse com um deslumbrante sorrio. Meu coração quase saiu pela boca e aceitei na mesma hora. Sabíamos que não seria fácil, seriamos observados por alguns com indiferença e criticados por muitos, mas havíamos concordado em não levar em conta o que os outros diriam.
Num belo dia, depois de dois anos e meio de namoro, quando estávamos em minha casa preparando o jantar, fui surpreendida com uma caixinha vermelha em cima do balcão, deixada ali propositalmente por Gustavo. Virei-me para encará-lo e logo fui surpreendida com o pedido de casamento. Em meio as lágrimas, aceitei e o abracei apertado, querendo eternizar aquele momento.
Hoje, com trinta e dois anos, nove anos após o acidente, casada e com uma vidinha dentro mim, vejo que a vida precisava ser vista por outro ângulo, nem que fosse um pouco mais baixo, por conta da cadeira de rodas. Não sei se voltarei a andar algum dia, mas não desistirei jamais de melhorar sempre. Minha palavra de ordem, depois do que aconteceu, é superação. Não deixei que o acidente roubasse os meus sonhos ou minha vida. Antes eu pensava que ela tinha tirado a minha liberdade, mas hoje vejo que era eu quem estava ponderando meus caminhos.
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A Vida por um Ângulo Diferente
Short StoryA vida nem sempre é do jeito que imaginamos, às vezes ela nos faz ver as coisas de uma maneira diferente, a dar valor as pequenas coisas e faz com que possamos nos superar sempre.