Capítulo 2

48 5 3
                                    

- Eu... - o cara gato à minha frente olha para mim de cima a baixo e franze as sobrancelhas, mas logo se recompõe e seu rosto volta à mesma expressão indiferente de antes. - Vim pegar minha gata.

- Ah... tá... - ok, Lily, feche a boca, você está agindo como uma retardada! - Quer dizer... aqui. - tento entregar o bicho, que solta um miado e crava as unhas no meu braço.

Durante alguns segundos, eu e o meu novo crush existencial tentamos arrancar o demônio do meu braço sem causar mais estragos ainda. Como eu sou eu, isso é impossível, e a tentativa resulta em um corte no meu braço. Quem diria que um simples arranhado de gato doeria tanto?

Quando a cria de satã já está no colo do dono, ele volta a olhar pra mim, e, apesar de disfarçar bem, consigo perceber uma espécie de careta.

- Ahn... eu já vou então.. valeu por acha-la.

- Hm... Não tem de quê... - Céus, alguém me mata. - Boa noite. - e fecho a porta.

Bato a mão na minha própria testa. Eu sou uma vergonha para a sociedade.

Suspiro e vou pegar as coisas para tomar banho. A água está gelada quando abro a torneira. Ótimo... O chuveiro elétrico quebrou. Nada de água quente hoje. Vou ter que esperar até amanhã pra ligar para o meu padrinho. Até lá é respirar fundo e enfrentar o gelo líquido que cai como uma mini cachoeira do Alasca.

Suspiro, pensando em como minha vida é uma merda. Qual a probabilidade de um garoto lindo e maravilhoso bater na minha porta, procurando por mim? Com certeza deve ser de uma em um milhão.

E mesmo assim esse pequeno milagre aconteceu. E eu estava suja, com cheiro de esgoto e cara de quem poderia matar alguém.

Com muita sorte, ele poderia ser alguém que não liga muito para aparências. Mas eu nem ao menos consegui elaborar uma frase decente ou que expressasse minha enorme bagagem cultural.

- Eu te odeio universo! - resmungo, olhando para o Além.

Como resposta, o universo faz sabonete cair no meu novo machucado no braço, e começa a arder como o inferno.

Banho tomado, coloco minha roupa pra lavar e visto meu pijama laranja. Pego meu celular e ligo para Zoe, colocando no viva-voz.

Alguém ainda usa o celular pra ligações? Sim. Eu.

Depois de destruir 4 celulares, a única coisa que você ganha é o bisavô dos smartphones. Daqueles que ainda vêm com tecladozinho. E sem whatsapp.

Ao menos tenho ligações ilimitadas!

- Alô?

- EU ODEIO VOCÊ.

- Credo, o que eu te fiz?!

- Você me fez passar debaixo daquela maldita escada, foi isso que você fez! Eu estou com tanta vontade de matar você agora! - grito.

- O que aconteceu?

Enquanto conto tudo, detalhe por detalhe, desde o momento em que a deixei em casa, pego uma escova e vou para perto do espelho. Meu cabelo castanho precisa de toda uma técnica para ficar um mínimo decente. Ele podia ser normal como qualquer cabelo, mas não. É um híbrido de liso e cacheado, que o faz ser volumoso de um jeito estranho.

Eu sou muito parecida com minha mãe. O mesmo tom de pele clara, os mesmos olhos castanhos. O mesmo sorriso com covinhas apenas de um dos lados. Sou um clone da Meghan Montgomery aos 17 anos. O que de certa forma é uma droga, porque eu não faço ideia de como seja meu pai.

Isso já me incomodou mais antigamente, mas hoje em dia nem ligo mais. Não precisei de um pai vai minha infância toda, e não virei nenhuma rebelde sem causa que foge de casa e rouba mercados. Estou muito bem, obrigada.

- Espera, espera! Gato tipo Capitão América ou gato tipo Matt Lanter? Descreve!

- Gato tipo gato, ué. Hmm... Ele era maravilhoso. Tinha o cabelo castanho. Não o meu tom de castanho, acho que um pouco mais escuro. E dois piercings na boca. Tipo um em cada canto. Ah, e alargadores.

- Na boca??

- Não, trolha, na orelha! Onde você acha que se coloca alargadores?? Enfim. E ele tinha olhos tipo WOW. Heterocromáticos. Juro que é verdade! Quer dizer, eram os dois azuis. Quase da cor dos seus, só que um pouquinho mais cinza. E um deles tinha uma mancha castanha.  E ele deve ter a altura do meu padrinho.

- Ok. Parece que temos um novo nível. Gato tipo Capitão América, Matt Lanter ou Dono-da-gata-Gato. Aliás, perguntou o nome dele?

- Não! Zoe, eu já tava morrendo de vergonha! A primeira impressão que ele teve de mim foi que eu era uma mendiga! Juro que quando abri a porta ele me olhou com uma cara de bosta tipo "que porra é essa?" ! Eu espero nunca mais topar com ele na rua.

- Se eu fosse você tinha puxado o boy magia pra dentro de casa, amarrado na minha cama, depois ia correndo ficar toda gata linda e maravilhosa, e aí obrigava ele a casar comigo.

- Claaaaro. Bem, vou assistir alguma comédia romântica do Adam Sandler e chorar porque minha vida é um cocô. Boa noite.

- Mande um beijo pra Jennifer Aniston por mim. Boa noite, Lily.

Como de costume, minha mãe saia aos sábados para ir ao cinema. Ela trabalha numa revista feminina não muito conhecida, a New Life, como crítica. Sua função é assistir filmes e peças de teatro e depois dar sua opinião sobre eles. Que trabalho horrível, eu sei. Ela também tem que ler certos livros, mas como ela não faz ideia do que julgar em um livro, cabe a mim ler e dizer o que achei.

Mas bem, hoje é sábado e como de costume, eu assisto Netflix e como pipoca de microondas.

Depois de quase duas horas assistindo Esposa de Mentirinha e me empaturrando de caloria em forma de milho espocado, decido dormir. Não tenho muito mais o que fazer hoje, e já são 22h.

Isso é muito cedo pra qualquer adolescente que quer aproveitar seu último final de semana de férias, mas é tarde o bastante pra me fazer bocejar depois de um dia exaustivo.

Vou até a cozinha pequena e pego um copo de água.

Essas férias não foram as melhores do mundo. Nunca são. Mas ainda assim eu gostei. Nada de espetacular aconteceu, nem de ruim nem de bom. E isso é bom. A rotina.

A rotina é segura. Você sabe o que esperar. E as pessoas se acostumam a você, e ao que você faz. Como a garçonete que todos os domingos me dá uma jarra de suco de laranja e um sanduíche na lanchonete, ou o atendente da livraria, que logo me fala quais os novos livros pouco conhecidos chegaram.

Isso faz você se sentir importante, de um jeito bom. Faz você sentir que o mundo nota você.

Ao voltar para o quarto, passo pelo calendário, e solto um gemido de sofrimento.

As aulas começam na segunda.

E do jeito que sou azarada, é melhor me preparar psicologicamente para minha tendência de começar o ano letivo com o pé esquerdo.

Black CatOnde histórias criam vida. Descubra agora